TRÊS
DIAS NA NOVA 'FRONTEIRA DA COCA': COMO DROGAS E ARMAS ENTRAM LIVREMENTE PELA
AMAZÔNIA.
Uma linha tortuosa de 1.632
km desenhada por rios em uma área praticamente inabitada na floresta amazônica.
Esse é o cenário da tríplice fronteira brasileira com os maiores produtores de
cocaína do mundo: Peru e Colômbia.
Com armamento pesado e
lanchas potentes, narcotraficantes dos dois países enfrentam poucos obstáculos
no transporte de armas e drogas para Tabatinga (AM), no lado brasileiro. A
cidade, onde a pobreza e a falta de infraestrutura são flagrantes, é descrita por
moradores da região como "quintal da FDN".
A sigla se refere à facção
criminosa Família do Norte, que ficou conhecida mundialmente nos primeiros dias
de 2017, quando dezenas de homens foram decapitados e esquartejados em
presídios de Manaus.
A origem dos massacres nas
prisões, segundo autoridades, é justamente a disputa pelo controle dessa rota
amazônica da coca. Argumentando falta de verbas e incentivo do governo, as
forças de segurança da região dizem não conseguir controlar o vaivém do mercado
ilegal na fronteira.
A BBC Brasil foi conferir
de perto a situação na fronteira.
"Com os recursos que
temos hoje em Tabatinga, é impossível controlar a fronteira", disse um
agente da Polícia Federal, mirando a imensidão do rio Solimões do único posto
fluvial das forças de segurança na região.
Direito de imagem Felipe
Souza/ BBC Brasil Image caption Forças de segurança dizem que há incontáveis
rotas fluviais que dificultam patrulhamento sem helicóptero na fronteira
amazônica:
"Hoje a gente tem uma
lancha aqui motor 200. A FDN está investindo aí em motor 350. Fica complicado,
né?", diz. "Tinha que ter um helicóptero para policiar. O que temos
aqui são 18 policiais. Às vezes pega (os criminosos), às vezes, não."
A sensação entre os homens
do Exército, responsáveis pelo controle da fronteira, não é diferente.
"Nós não temos condição hoje, com os efetivos que trabalham nesta região e
em toda a Amazônia, de cobrir todos estes espaços", diz o coronel Júlio
César Belaguarda Nagy de Oliveira, comandante do 8º Batalhão de Infantaria de
Selva, responsável por vigiar a tripla divisa.
Também sem helicópteros,
com apenas 36 barcos à disposição - a maioria deles com potência semelhante aos
dos pescadores e ribeirinhos da região -, ele é responsável pelo controle da
fronteira com os dois países, onde centenas de novos caminhos abertos por
igarapés e pequenos rios surgem com as chuvas na época das cheias.
"É claro que alguma
coisa passa. Muitos desses marginais desviam e conseguem evitar a passagem
pelos nossos pelotões", diz Nagy.
Desprotegida, a rota cresce
a cada ano. Só em Manaus, principal destino dos entorpecentes que entram pela
fronteira, o volume de drogas apreendidas cresceu nada menos que 1.324% entre
2011 e 2015, segundo a Secretaria de Segurança do Estado.
Direito de imagem Felipe
Souza/ BBC Brasil Image caption Durante três dias, a BBC Brasil presenciou
policiamento na fronteira apenas uma vez, numa demonstração do Exército
'Falta material humano'
Procurado, o Ministério da
Justiça não respondeu por que não há helicópteros na região, nem comentou a
falta de policiamento registrada pela reportagem.
"Gestões são feitas
diuturnamente para inibir e reprimir o crime e também subsidiar políticas para
fortalecer o enfrentamento ao crime, especialmente na fronteira", disse a
pasta, por meio de nota. "A PF realiza em média cerca de 40 operações
especiais por ano, que são especialmente para atingir organizações criminosas.
Cerca de 300 pessoas são detidas por ano."
O ministério disse ainda
que "tem priorizado a lotação dos novos policiais nas regiões de
fronteira", sem informar, entretanto, quantos homens serão deslocados para
a área, nem quando.
Procurado diversas vezes
por telefone e e-mail, o Exército não respondeu a nenhuma das perguntas
enviadas pela reportagem. No fim de janeiro, o ministro da Defesa, Raul
Jungmann, anunciou a realização de uma série de encontros e reuniões com
ministros de Defesa de países vizinhos, com a principal intenção de tratar da
segurança nas fronteiras. Mas, desde então, nenhuma iniciativa concreta foi anunciada.
Direito de imagem Felipe
Souza/ BBC Brasil Image caption 'Não temos condição hoje, com os efetivos que
trabalham nesta região e em toda a Amazônia, de cobrir todos estes espaços',
diz o coronel Júlio César Belaguarda Nagy de Oliveira, do Exército
Em entrevista em seu
gabinete em Manaus, o procurador-geral de Justiça do Estado, Pedro Bezerra,
reconheceu os problemas.
"Falta muito material
humano e condições para esses soldados que dedicam sua vida para evitar esse
tráfico. Condições para que possam atuar de forma eficiente, como materiais,
lanchas, armamento, treinamento", disse.
O procurador concorda com o
agente da Polícia Federal e diz que o tráfico de drogas tem mais dinheiro e
equipamentos. "Como eles (os traficantes) têm poder em termos de dinheiro,
eles compram lanchas, hidroaviões. Nós temos limitações financeiras a nível de
Estado e dependemos de uma certa burocracia."
Ele prossegue, sem
otimismo. "Então, infelizmente as coisas se resolvem pela vontade do
material humano de que nós dispomos. Estes agentes que fazem esse tipo de
operação arriscando as próprias vidas".
Água, terra e ar.
A fragilidade da vigilância
na fronteira brasileira na Amazônia não ocorre apenas nos rios. Nos três dias
de fevereiro em que esteve em Tabatinga, a BBC Brasil testemunhou centenas de
pessoas entrando e saindo do país com malas e sacolas sem qualquer revista.
Direito de imagem Felipe
Souza/ BBC Brasil Image caption A BBC presenciou livre movimento na divisa
entre Brasil e Colômbia.
Logo na primeira noite, um
homem foi assassinado bem próximo de onde estava a reportagem da BBC Brasil, a
poucos passos do marco da fronteira entre Tabatinga e Letícia, na Colômbia.
"Acontece por volta de
uma vez por semana. São acertos de contas", explicou um agente do
Exército, apontando para o homem caído sobre uma mesa de bar, baleado há menos
de cinco minutos por um homem em uma motocicleta.
As motos são o principal
meio de circulação no local, que não tem transporte público. Sobre elas, grupos
de até quatro pessoas circulam livremente, sem capacete, carregando mochilas e
malas.
A área de fronteira com a
Colômbia é delimitada apenas por uma placa. Não existe ali nenhum posto de
revista ou fiscalização. Durante a visita, o único patrulhamento registrado
ocorreu durante uma atividade de demonstração do Exército para a reportagem.
Direito de imagem Felipe
Souza/ BBC Brasil Image caption Fluxo de pessoas na Tríplice Fronteira
A fronteira com o Peru, delimitada pelo rio Solimões, também não tem fiscalização.
Pessoas vindo da ilha
peruana Santa Rosa entram e saem no Brasil por meio de pequenos barcos que
atracam em um porto na base policial. As autoridades locais dizem que seria
"impossível" fiscalizar todo mundo.
"Muita gente trabalha
de um lado e vive do outro ou faz compras do mês em um dos dois países
vizinhos. A circulação de pessoas é gigantesca, seria impraticável", alega
o coronel Nagy, do Exército.
Direito de imagem Felipe
Souza/ BBC Brasil Image caption Chefe da Polícia Federal afirma que com os
atuais recursos é 'impossível' controlar a fronteira.
No único aeroporto de
Tabatinga, que tem um voo diário para Manaus, a grande maioria das bagagens
embarcadas não passa por raio-X. Esta brecha de segurança se repete, além da
fronteira, na maior parte das cidades do Brasil.
Segundo a Anac (Agência
Nacional de Aviação Civil), a fiscalização das malas é obrigatória apenas em
voos internacionais. No caso de voos domésticos, ela seria feita em alguns
aeroportos do país.
Dinheiro e pessoas
No batalhão do Exército em
Tabatinga, o coronel Nagy atribui as falhas na vigilância da fronteira à
ausência do governo na região.
"Faltam vagas de
trabalho nos municípios, estrutura de saneamento básico, ruas pavimentadas,
enfim, condições para que essa população tenha uma vida normal", disse.
Ele conta que, pela falta
de oportunidades de estudo, muitos jovens não tem alternativa de renda a não
ser o tráfico. "(Eles) participam desse tráfico ilegal de drogas e armas
para ter uma condição de subsistência de vida", diz.
"Jovens com pouca
condição de estudo enxerga
m nesse transporte a chance de ganhar 1, 2, 4, 5 mil
reais, Este transporte é uma oportunidade fácil e rápida de ganho
financeiro."
Direito de imagem Felipe
Souza/ BBC Brasil Image caption Segundo chefe do Exército colombiano, 'demanda
por cocaína e maconha no Brasil cresceu', aumentando a importância da rota
amazônica
O comandante do Exército
colombiano em Letícia, coronel Nelson Roberto Carvajal Reyes, confirma as
dificuldades e diz que, atualmente, membros da Família do Norte cruzam a
fronteira para negociar exclusividade nos negócios.
Em sua área de atuação
opera uma das frentes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) que
não aceitaram o acordo de paz em andamento com o governo do país.
"Há um fenômeno
perverso aqui porque esta é uma tripla fronteira. Colômbia, Brasil e Peru. Os
mesmos tipos de agentes criminosos são vistos nestes três países e isso faz o
trabalho deles mais fácil", diz o coronel Nelson Roberto Carvajal Reyes,
em sua sala de trabalho no batalhão.
"A demanda por cocaína
e maconha no Brasil cresceu. Então, cartéis como a Família do Norte estão
tentando se aproximar de cartéis colombianos para ganhar hegemonia nesta
rota."
Ele explica que a rota
passa também por Suriname e Guiana, de onde vai para a Europa e os Estados
Unidos.
Nas águas que banham a
tríplice fronteira, autoridades já encontraram drogas escondidas na barriga de
peixes, como o tambaqui, ou presas em fundos de barcos. Muitas vezes, as
mercadorias passam boiando pelo rio para serem buscadas do outro lado, sem
chamar atenção do Exército.
"Os traficantes são
muito criativos e se reinventam sempre", diz o comandante colombiano. Para
80 kg de cocaína, as mulas, como são chamados os homens que fazem a travessia,
ganham em torno de 2 milhões de pesos colombianos (ou R$ 2 mil).
Na outra ponta, a
mercadoria chega a ser vendida por preços 20 vezes maiores.
Pesquisador do Laboratório
de Estudos da Violência da Universidade do Ceará e especialista em segurança na
fronteira, o professor Luiz Fabio Silva Paiva diz que há registros de tráfico
de cocaína na região desde os anos 1970.
"O Cartel de Letícia
teve conexões com o Cartel de Medellín, atraindo pessoas para a região atrás
dos resultados econômicos produzidos pela cocaína."
Paiva afirma que a política
de "guerra às drogas" na região é falha e não consegue diminuir o
consumo destas substâncias.
"O mundo do crime se
alimenta das contradições de uma política de controle que não controla, que não
consegue compreender que as drogas são um problema de saúde pública e não uma
questão policial", diz.
Felipe Souza e Ricardo
Senra Enviados especiais da BBC Brasil a Tabatinga
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