POLÍTICA PÚBLICA E A
QUESTÃO DA ABSTINÊNCIA AO USO DO CRACK.
Dr. Cláudio
Jerônimo da Silva
Um paciente de 27 anos, usuário de crack desde
os 20, procura atendimento porque está sentindo dores torácicas, tosse e
emagrecimento. Ele está assustado com o emagrecimento e com as dores. Faz
exames, recebe um diagnóstico, conversa com os profissionais e diz que quer
parar de usar a droga. Aceita procurar um centro de tratamento para o crack e
tomar medicações para sua pneumonia. É admitido no leito de observação para
receber antibiótico endovenoso e, quatro horas depois, foge do Pronto-Socorro
para usar crack.
A situação descrita acima não é incomum nos
serviços de saúde e gera diferentes reações na sociedade, incluindo comunidade
técnica. Há quem diga que o paciente estava mentindo quando aceitou tratamento,
que de fato não quer se tratar e que neste caso não vale a pena investir em
nenhum tratamento. Há quem diga que a ação da droga no cérebro turvou sua
capacidade de decisão e o impeliu ao uso, mas que não devemos desistir dele e
que neste caso deveríamos investir na abstinência para que ele melhore. Há quem
diga que, se ele recebesse suporte para usar o crack de maneira segura, não
teria apresentado pneumonia e, portanto, deveríamos investir na redução dos
danos secundários ao uso, e não no uso propriamente dito. Há quem diga que a
situação demonstra o fato de que a droga sempre existiu, os usuários também e
que, portanto, não há o que ser feito, deveríamos desistir. Há quem diga que
ele deveria ser mantido à força no Pronto-Socorro, porque não estava em
condições de decidir nada e a abstinência deve ser alcançada a qualquer custo.
E há muitas outras possibilidades... Qual é a mais correta? Existe uma saída
única que se aplique a todos os usuários?
Questões técnicas, ideológicas, filosóficas e
políticas se misturam de modo a gerar enorme confusão e, no meio dela, o maior
interessado, o usuário, fica desassistido, perdido e refém de uma discussão
teórica e de uma disputa intelectual. É preciso, então, colocar alguma
racionalidade nessa confusão para que as condutas clínicas e as ações de
políticas públicas não sejam tão atabalhoadas e confusas quanto é a discussão
teórica, acadêmica.
O primeiro ponto a ser considerado: as pessoas
são únicas. Os seus problemas, por mais assemelhados que sejam com aqueles dos
demais humanos, estão inseridos em um contexto que é único. Pessoas com câncer
de pulmão não são todas iguais, com as mesmas necessidades. Pessoas com gripe
também não. Usuários de crack idem. Portanto, assim como não faz sentido
estabelecer uma conduta ou política que determina que todos os gripados
deveriam ser tratados com um único tipo de assistência, não faz sentido
estabelecer que todos os usuários de crack deveriam receber essa ou aquela
intervenção. Haverá, portanto, aqueles que não querem se tratar e querem
continuar usando a droga. Outros que querem parar de usar. Alguns que terão
dificuldade em parar, outros que conseguirão com mais facilidade. Qual é o caso
do paciente descrito acima? É possível saber sem uma avaliação minuciosa,
técnica, multiprofissional? Como podemos estabelecer que ações de saúde pública
devam ser unicamente baseadas em questões filosóficas, políticas e técnicas
genéricas? Talvez seja melhor dar condições para que cada caso seja avaliado
individualmente e que o profissional tenha condições de decidir entre várias
possibilidades de conduta. Assim, é possível que algum paciente se beneficie da
internação para interrupção imediata do uso. Que outro se beneficie de
acompanhamento e orientação e motivação, e assim por diante.
O segundo ponto: as evidências científicas
sobre o que funciona e o que não funciona devem estar sempre à mente de quem
avalia. As evidências apontam, por exemplo, em estudo brasileiro publicado no
Journal of Addictive Disease em 2011, que 43 de 102 usuários de crack seguidos
por 12 anos conseguiram abstinência. Isso equivale a 40% da amostra. Vinte e
sete deles haviam morrido, o que equivale a 26% da amostra*. Quem serão aqueles
pacientes que ficarão abstinentes? O paciente descrito acima estaria em qual grupo?
Essa incerteza sobre o futuro do usuário do crack é a mesma que ocorre em
pacientes com câncer, por exemplo. Na dúvida, é melhor investir em todos,
porque qualquer diminuição nessa mortalidade seria importante. E mais pesquisas
precisam ser realizadas para que se descubra o que funcionou e o que não
funcionou.
O terceiro ponto: há uma diferença marcante
entre meta e condição. Dizer que a abstinência deveria ser uma meta é muito
diferente de dizer que a condição para que um paciente fique em tratamento é
que ele esteja abstinente. Guardadas as diferenças, o mecanismo seria o mesmo
que dizer ao paciente com pneumonia que ele não deve tossir para que continue
se tratando. Não faria sentido. Mas faria muito sentido dizer que a meta do
tratamento é que ele pare de tossir uma hora. Algumas vezes será fácil atingir
a meta, outras não. Devemos desistir quando não está fácil? Devemos abandonar
quem não consegue? Devemos subestimar as potencialidades de qualquer pessoa com
câncer porque a mortalidade é alta e a cura difícil? Com usuários de crack, o
raciocínio deveria ser o mesmo.
Quarto ponto: conduta clínica e política
pública são coisas diferentes. As metas e os meios de tratamento são decisões
clínicas e devem obedecer aos critérios de validação científica e testes
clínicos para resolução de problemas individuais, daquele paciente
especificamente, descrito acima, que está com pneumonia no Pronto-Socorro.
Política pública é outra coisa: vou discutir neste blog em outra ocasião qual é
seu conceito. Por ora, devo dizer que, quando as coisas se misturam, o
resultado não é bom. As políticas públicas não deveriam discutir a abstinência
ou a redução de danos. Assim como não se discutem a cura ou a não cura da aids,
ou da pneumonia, ou da esquizofrenia, ou qualquer outro problema. Isso é meta
clínica, não política pública. As políticas deveriam criar condições para que
cada paciente seja avaliado dignamente e para que todos eles tenham o direito
de receber todas as intervenções que encontrem respaldo na literatura técnica,
e não apenas uma.
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