FILHOS DE USUÁRIOS DE
DROGA SÃO MAIORIA ENTRE AS CRIANÇAS ACOLHIDAS EM ABRIGOS.
Por Ana
Flávia Oliveira , iG São Paulo
Parte dos
filhos de viciados em crack é retirada dos pais, que não têm condições de
cuidar das crianças, e encaminhados para abrigos, onde esperam adoção ou ficam
até os 18 anos
Duas camas
impecavelmente cobertas com colchas cor-de-rosa, uma boneca de pano na porta e
um pequeno guarda-roupas deixam claro que duas meninas dividem um quarto. Elas
vivem como irmãs, mas não são nem parentes e, apesar de dividirem uma história
de sofrimento e abandono, ainda sorriem para os visitantes e mostram os seus
novos brinquedos.
As pequenas
vivem em um abrigo para crianças e adolescentes localizado na zona sul de São
Paulo com outras 28 crianças. As crianças, que foram retirados pela Justiça do
convívio com os pais, vivem em cada uma das três casas (dez em cada) no abrigo
da ONG Aldeias Infantis SOS Brasil. O local tenta reproduzir um ambiente
familiar, com uma mãe-social (funcionária, que mora na casa com as crianças), e
rotinas diárias, de estudo, lazer e até mesmo trabalho - para os adolescentes -
que são seguidas por todos os moradores.
Uma das
meninas tem 5 anos e ao lado dos irmãos mais novos - dois meninos de quatro e
dois anos e uma menina de três - foram retirados da casa onde viviam com os
pais em uma favela da zona sul há um ano e meio e levada para o abrigo. A
Justiça entendeu que o cuidado das crianças era negligenciado.
O pai era
usuário de drogas e a mãe, que já desenvolvia um quadro de depressão, era
passiva às vontades do marido e não tinha condições de cuidar dos filhos. Na
ocasião da retirada, os pais tinham saído de casa, deixando as crianças
sozinhas. Eles foram denunciados porque a filha mais velha, na época com três
anos, cuidava dos irmãos menores, diz a psicóloga da Ong Aldeias Infantis,
Fabiana Nápolis.
“Eles
chegaram desnutridos, chorosos, irritados, não comiam e não falavam”, diz
Fabiana.
Além do
trabalho realizado com as crianças por uma equipe técnica de psicólogos,
fonaudiólogos e assistente sociais, a psicóloga explica que o abrigo, em
parceria com a Justiça e secretarias de Saúde e Assistência Social do
munícipio, tentou encaminhar o pai para um tratamento.
“Marcamos
consultas, mas ele não quis se tratar e vive na rua. Há seis meses, não sabemos
o paradeiro dele”, completa a psicóloga.
Segundo ela,
neste período, a mãe das crianças, descobriu que está com câncer no colo do
útero e está internada em estado terminal. “A guarda das crianças será
encaminhada para três familiares maternos e esperamos que até o fim desse
semestre as crianças estejam nas suas novas casas”, diz a psicóloga.
A colega de
quarto, hoje com 12 anos, tem um histórico parecido. Mais velha entre quatro
irmãos, também era responsável pelos mais novos, de oito, cinco e quatro anos,
quando foi acolhida, há dois anos.
“Nenhum
deles ia para escola e eram agressivos com os outros e entre eles. A mais velha
cuidava dos irmãos e essa responsabilidade materna precoce fez ela perder a
referência de si mesmo”, diz Daniela Cardoso, assistente social do abrigo.
Pai e mãe
também são usuários de drogas e chegavam a levar os filhos para esmolar no
farol, dizem as funcionárias do abrigo. Segundo elas, a mãe das crianças tem
uma questão neurológica forte” e o “pai é violento”.
“Eles [os
pais] mentem, enganam, são dissimulados e a gente não consegue estabelecer
vínculos. A mãe apanha do marido. Fizemos um trabalho especifico, mas ela já
não consegue sair desse ciclo”, disse Fabiana.
Ainda de
acordo com as funcionárias, o comportamento e vício dos pais deixaram sequelas
visíveis nas crianças. Um dos meninos, que hoje tem seis anos, tem um
comprometimento neurológico e visual “que pode ser em decorrência do uso de
drogas durante a gravidez”. O outro, diz Fabiana, é violento, dissimulado e
mentiroso. O menino de dez anos é inteligente e perpicaz, mas não tem limites.
“A gente até consegue negociar, mas ele não tem noção de limites”, diz Daniela.
Apesar de
não terem condições de cuidar dos filhos, os pais, que moram no Guarujá (a 86
km de São Paulo), visitam as crianças pelo menos uma vez por mês. “A gente
tenta não quebrar esse vínculo. Eles não foram destituídos dos pais porque é o
único modelo de família que essas crianças conhecem”, diz Débora Santos de
Conti, gestora do local. Segundo Débora, por serem um grupo de irmãos, que a
gestora tenta não separá-los em caso de adoção, terem mais de seis anos e serem
negras, a adoção dessas crianças é mais difícil. “A tendência é que eles fiquem
aqui até completarem 18 anos”, diz.
Abrigados
A história
dessas oito crianças é parecida com as de cerca 46 mil que vivem em abrigos no
Brasil hoje. Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que
tabulou dados em 2012 e 2013, baseado em informações obtidas com os abrigos, os
principais motivos para o acolhimento são uso de drogas pelos pais (79%),
negligência (77%), abandono pelos pais ou responsáveis (74%), violência
doméstica (53%), abuso sexual praticado pelos pais ou responsáveis (43%) e
ausência dos pais ou responsáveis por prisão (28%).
Antonio
Carlos Ozório Nunes, membro auxiliar da Comissão da Infância e Juventude do
CNMP, explica que o estudo permite relatar mais de uma causa para o acolhimento
e que os motivos estão ligados.
“Em regra,
nos casos de negligência há também a questão do vício em drogas, álcool ou
casos de violência. Não é uma coisa só que levou ao abandono”.
Segundo ele,
entre os casos de institucionalização ligada ao vício dos pais, o álcool e
crack são maioria.
“A maior
incidência ainda é de álcool. Depois vem o crack. Mas as mães dependentes do
crack são muito mais difíceis de lidar por conta da devastação que a droga faz
com ela. São as que necessitam uma atenção maior e a retirada do filhos é
comum”, diz Nunes
De acordo
com Fábio Paes, assessor do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda) e da ONG SOS Aldeias Infantis, a droga impede que os pais
cuidem dos filhos. “Cria-se uma situação de vulnerabilidade porque os genitores
não conseguem cuidar das crianças. A questão da droga cria a negligência, falta
a alimentação, encaminhamento para escola, o cuidado e o afeto. Há um
esquecimento da criança”, diz Paes.
Apesar não
ter dados sobre o índice de abandonos relacionados ao vício do crack, Paes
afirma que a droga tem se tornado um dos principais motivos que levam ao
abandono de crianças e adolescentes.
Recém-nascidos
O crack
também é motivo para que muitas mães sejam impedidas pela Justiça de sair da
maternidade com os filhos. No Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, no
Belém (zona leste de São Paulo) especializado em partos de alto risco, dos 89
casos de mães viciadas em crack que foram encaminhadas ao hospital, 49
recém-nascidos não puderam sair com as mães e foram enviados a abrigos pela
Vara da Infância e Juventude.
“Nos casos
em que a gente entende que a mãe não tem condições de cuidar do bebê e a
assistência social não encontra nenhum parente próximo que possa se
responsabilizar pela criança, acionamos a Justiça”, afirma o obstetra Corintio
Mariani Neto, diretor do hospital.
Segundo ele,
o número de mães viciadas em crack que deram entrada no hospital aumentou 342%
desde 2008, quando 26 grávidas tinham envolvimento com crack. Dessas 13,
tiveram a guarda da criança retirada ainda na maternidade.
“Isso vem
num crescente há vários anos. Em 2008, o serviço social do hospital começou a
identificar comportamento diferente em algumas pacientes e percebemos que eram
viciadas. O principal é o crack, apesar de ter outras [drogas]. Então passamos
a fazer um protocolo diferenciado de atendimento e ser uma referencia para
essas mulheres”, diz Mariani Neto.
Segundo ele,
os filhos de mães viciadas em crack nascem prematuramente e são menores em
relação as outras crianças mesmo em gestações completas.
“A criança
nasce com a droga na circulação e tem comportamento agitado. O bebê chora mais
que os outros e não fica sossegado, mesmo estando limpo e alimentado. Esse
comportamento vai, aos poucos, diminuindo. Mas se a droga gerou um dano no
cérebro, só dá para saber na idade pré-escolar quando a criança vai ter
dificuldade em lidar com coisas abstratas, como raciocinio lógico, e logo vai
começar a manifestar dificuldades de aprendizado”, diz o diretor. Ele conclui
que, nestes casos, a evasão escolar e repetência são mais frequentes.
Segundo
Mariani, cerca de 15% das mães viciadas fogem do hospital sem levar os filhos.
Nestes casos, se parentes não forem localizados e assumam a responsabilidade
pela criança, ela também é encaminhada para Justiça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário