quinta-feira, 2 de janeiro de 2014



A multiplicação das drogas.

Revista Época
Em 2011, a polícia brasileira conhecia oito tipos de drogas. Agora são 30. Traficantes não sabem o que vendem; jovens não sabem o que tomam. O que fazer?

Uma denúncia anônima levou a Polícia Federal a prender, em julho, uma brasileira que desembarcava no aeroporto internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, vinda de Foz do Iguaçu. Numa cinta abdominal, ela escondia uma substância identificada pelos policiais federais como LSD. A passageira já fora condenada por tráfico e cumpria pena em regime aberto. Oito dias depois, foi solta. A prisão foi revogada pela Justiça porque o laudo pericial atestou que a substância encontrada não era LSD, mas 2C-I, um alucinógeno mais potente. Ele parece cocaína, mas tem um nome mais simpático, smiles, o mesmo das carinhas amarelas, símbolo mundial de felicidade. A família de drogas 2C é ilegal nos Estados Unidos, onde seu uso foi relacionado a mortes de adolescentes. Ela ainda não foi proibida no Brasil.

O smiles é um exemplo do novo cardápio de drogas com potencial para causar dependência que prolifera pelo mundo e começa a aportar também no Brasil. Em busca de efeitos mais fortes ou fórmulas que escapem ao controle das autoridades, laboratórios clandestinos ampliam a quantidade de drogas sintéticas em circulação no mundo. Um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), divulgado em junho, informa que as novas substâncias psicoativas comunicadas pelos países-membros superaram no ano passado as substâncias controladas por leis internacionais. Eram 251 drogas novas contra 234 restritas.

Essas perigosas novidades encontram terreno fértil no Brasil, onde o consumo de drogas explodiu nos últimos 12 anos. Um levantamento inédito obtido por ÉPOCA mostra que a taxa de fatalidade por consumo de drogas cresceu 700% entre os anos 2000 e 2011. A análise foi feita pela Diretoria de Instituições e Estado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em números absolutos, o dado não impressiona. Foram 639 mortes por overdose no Brasil em 2011. “O aumento de mortes revela uma explosão do consumo”, afirma o economista Daniel Cerqueira, diretor do Ipea e especialista em violência urbana. “Vivemos uma epidemia. O mais triste é que drogas e crimes caminham juntos.”

As novidades no mundo das drogas trouxeram novos perigos. Até os anos 1990, a heroína injetável era o que havia de mais autodestruidor. Não mais. A substância mais assustadora do submundo das drogas chama-se krokodil. É uma concorrente barata da heroína. Usada na Rússia, injetável, ela provoca rapidamente síndrome de abstinência e – atenção – apodrece a carne do usuário. Ela mata por gangrena. Quem tiver estômago forte pode procurar na internet a palavra “krokodil”. As imagens dos viciados doentes causam repulsa.

Outra droga comparada a uma sentença de morte é um tipo de anfetamina conhecido como crystal meth. Ela se tornou conhecida no mundo todo por causa do seriado Breaking bad, aclamado neste ano com o Emmy, o Oscar da TV americana. Na ficção, um professor de química frustrado e com câncer terminal recorre à produção e ao tráfico de crystal meth para sustentar a família. Na vida real, a droga é um problemão de saúde pública na Europa e nos Estados Unidos. Inalado, o crystal meth chega rapidamente ao cérebro. Produz uma sensação de prazer nove vezes mais potente que a cocaína e uma síndrome de abstinência mais rápida e duradoura. Aprisiona rapidamente o usuário ao vício. As campanhas nos Estados Unidos tentam desestimular a primeira experiência, devido ao risco enorme de viciar. Embora a PF não tenha registro de apreensão de crystal meth no Brasil, o psiquiatra Thiago Fidalgo, coordenador do setor de adultos do Programa de Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de Medicina, diz que há dependentes da droga se tratando em clínicas particulares. “Os casos são raros, mas começam a aparecer em consultórios particulares, porque são pessoas que viajam muito e trazem do exterior”, afirma Fidalgo.

Há um risco adicional embutido na proliferação de novas drogas: o traficante não sabe mais o que vende, nem o usuário sabe o que usa. “Não sei no que difere uma droga da outra. O fornecedor identifica pelo desenho e diz ‘leva essa que tá bombando. Aquele com desenho de tubarão é mais forte’. Não entendo nada sobre a química ou composição. Confio, compro e entrego para os meus amigos”, diz o universitário Ricardo (nome fictício), de 22 anos, morador da Zona Sul do Rio e vendedor de drogas em baladas.

O comportamento irresponsável do jovem traficante é muito mais comum do que se imagina. Devido ao ritmo acelerado com que aparecem no mercado e aos diversos apelidos que recebem, as novas drogas são essencialmente desconhecidas. O Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Dependência detectou 49 novos tipos de substâncias psicoativas em 2012, quase uma por semana. Muitas delas chegam ao Brasil. Dados inéditos da Polícia Federal obtidos por ÉPOCA revelam que, até agosto, foram apreendidos 30 tipos diferentes de droga no país. Em 2011, eram oito.

O fato de algumas dessas substâncias ainda serem legais não as torna menos perigosas. O desconhecimento sobre efeitos e doses letais faz delas uma amea­ça ainda maior, diz o psiquiatra Fidalgo. “Há dois perfis de usuário: o clássico, que usa cocaína, álcool e maconha, e o abusador de várias coisas. Esse segundo tipo está sempre em busca de novas sensações. A gente não sabe o que ele está ingerindo”, afirma Fidalgo. O uso de drogas múltiplas, muitas delas desconhecidas dos médicos e das autoridades, complica o controle do vício e tem levado muitos jovens a desenvolver surtos psicóticos, com mania de perseguição ou depressão aguda. A psiquiatra Analice Gigliotti, chefe do Setor de Dependência Química da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, diz que, quanto maior a variedade de substâncias usadas, maior é a alteração na química cerebral – e maior as chances de o viciado encontrar o que procura no mercado clandestino de drogas. “Fica mais difícil contê-lo”, diz Analice.

“Educar o jovem para não usar drogas é um trabalho de formiguinha sobre o cuidado que ele deve ter com tudo o que bota para dentro do corpo”, diz o psiquiatra Jorge Jaber, presidente da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas (Abad). No Brasil, a Polícia Federal e a Anvisa, a agência encarregada de fiscalizar e regular tudo o que possa afetar a saúde dos brasileiros, atuam em parceria para manter atualizada a lista das drogas proibidas. “Várias substâncias são redesenhadas para burlar o controle. É um desafio mundial”, diz Renata Moraes, coordenadora da área de produtos controlados da Anvisa. Para combater a multiplicação de novas substâncias, a PF tem optado por emitir laudos apontando detalhadamente para a Justiça as características das substâncias apreendidas, na esperança de que elas sejam rapidamente ilegalizadas. A traficante do smiles escapou do flagrante no aeroporto em julho. Da próxima vez, talvez não tenha a mesma sorte.
 
Fonte:ABEAD(Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas)

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