sexta-feira, 17 de agosto de 2012


A campanha “É preciso mudar” defende a descriminação das drogas, não deixa isso claro, mas entra na sua casa em horário nobre, pela Globo. Um mau passo da emissora, além de autoritário!

Caros, vai aqui um daqueles textos quilométricos, mas que tratam de uma questão séria: descriminação das drogas. Uma campanha está em curso na TV Globo. E eu digo por que ela tem de sair do ar.
O meu arquivo está aí. Combato boa parte das críticas bucéfalas que são feitas à Rede Globo, especialmente pela esquerda cascuda. No mais das vezes, não passam de tolices conspiratórias e de chororô de derrotados. Mas a emissora também comete erros. Ter aderido à campanha “É Preciso Mudar”, que defende a descriminação das drogas — embora o faça de modo oblíquo —, é um erro colossal. Sobretudo porque, lamento ter de fazer esta consideração, o telespectador está sendo enganado. Vamos ver. O objetivo é reunir um milhão de assinaturas para propor uma nova lei sobre drogas. E por que acuso a burla? Porque o que se quer mesmo é a descriminação das drogas, e isso não fica claro.
Vocês certamente já assistiram à peça publicitária, exibida nos intervalos da novela “Avenida Brasil”. Deve fazer parte do marketing social da emissora. Atores representam consumidores de drogas que teriam sido presos injustamente por tráfico, tendo, então, suas vidas bastante prejudicadas por aquilo que é tratado como uma “injustiça”. O ar compungido, o olhar sofrido, a postura de vítima… Até parece que estavam plantando uma árvore, ajudando uma velhinha a atravessar a rua ou dando leite pro gatinho quando, de súbito, chegaram os homens da lei, como numa história de Kafka, e os conduziram para alguma estranha repartição do estado repressor. Não! Tratava-se de pessoas envolvidas com as drogas e certamente não ignoravam as possíveis implicações legais. Ocorre que, no Brasil, todos são sempre vítimas — tanto as vítimas de fato como os seus algozes.
Muito bem! Já hoje o Brasil não prende o usuário de droga. Aquela Comissão de Juristas que quer mandar para a cadeia quem maltrata um cachorro e liberar o aborto de humanos, que não merecem ter o status de um cachorro, também foi absolutamente laxista com o usuário de substâncias ilegais. A proposta enviada ao Senado, certamente endossada pela turma do “É preciso mudar”, exclui do crime quem (leiam com atenção, em vermelho):
I – adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo drogas para consumo pessoal;
II – semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de drogas para consumo pessoal.
§3º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, à conduta, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, bem como às circunstâncias sociais e pessoais do agente.

§4º Salvo prova em contrário, presume-se a destinação da droga para uso pessoal quando a quantidade apreendida for suficiente para o consumo médio individual por cinco dias, conforme definido pela autoridade administrativa de saúde.
Voltei
Entenderam? Se é consumo para cinco dias, tudo bem. Um usuário de crak pode dar conta de até 20 pedras por dia. Logo, se alguém for pego — quero dizer, “abordado” — com 100 pedras, poderá alegar “uso pessoal”. Um fumante regular de maconha queima quatro ou cinco cigarros diariamente (sim, há quem fume muito mais), mas vá lá. Quem andasse por aí com erva para 20 cigarros, tudo bem! O mesmo valeria para papelotes de cocaína, heroína… Ah, mas a comissão endurece as penas para o narcotráfico! Uau!
Notável pensamento! Criam-se todas as condições para um aumento da demanda, mas depois se promete severidade na repressão à oferta! Vai ver os nossos juristas — e também os notáveis do “É preciso Mudar” — estão dedicados a combater o consumo de drogas pela elevação da inflação do setor, né? É tudo de um ridículo sem-par.
Não deixa claro.
A campanha “É Preciso Mudar”, veiculada de graça pela Rede Globo — e isso a torna, lamentavelmente, parceira da iniciativa lunática —, não deixa claro o que exatamente tem de ser mudado. Limita-se a defender uma diferenciação entre o tráfico e o consumo. E aí se lêem essas três pérolas em sua página na Internet (em vermelho). Comento cada uma em azul:
1 – A Lei 11.343/2006, que normatiza a política de drogas no Brasil não faz distinção clara e objetiva entre usuário e traficante.
É mentira. A íntegra da lei está aqui. O Artigo 28 deixa claro que ninguém é preso porque apenas consumidor. O máximo que lhe pode acontecer é isto:

“I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”
2 – Desde que a legislação entrou em vigor, dobrou o número de presos por crimes relacionados às drogas no Brasil. Essa falta de clareza está levando à prisão milhares de usuários que não são traficantes.
É um raciocínio de um cretinismo à altura de alguns promotores da campanha — já falarei a quem pertencem às mãos que balançam esse berço. Ainda que tenha aumentado depois da lei, não quer dizer que seja por causa da lei. Aliás, dado que o texto é mais brando com o usuário do que a anterior, só se pode concluir que ele não tem relação nenhuma com o anunciado aumento de presos. Pode até haver consumidores em cana como se fossem traficantes, mas a lei, em si, não pode estar entre as causas. Se há maus operadores da legislação, esse é outro problema. Trata-se de um exercício de lógica elementar. Vocês verão que uma comissão que se envolveu com essa tese reúne, entre muitos, um grande empresário e dois banqueiros. Não devem lidar com essa lógica nos seus negócios. Ou iriam à falência.
3 – A maioria desses presos nunca cometeu outros delitos, não tem relação com o crime organizado e portava pequenas quantidades da droga no ato da detenção.

A Globo deveria submeter esse mimo da mentira e da estupidez a seu excelente Departamento de Jornalismo para que seus telespectadores não fossem enganados por uma proposta tresloucada. O que vai nos itens 2 e 3 não passa de chute, de achismo, de vigarice intelectual. Faço aqui um desafio: exibam a base de dados. É o mínimo que a emissora campeã de audiência, que detém uma concessão pública, pode exigir e mostrar. Cadê a pesquisa? Onde estão os dados? Não existem!
Retomando
A questão das drogas, assim como a do aborto, é refém de mitômanos, que ficam inventando e divulgando números que não existem. Até outro dia, espalhava-se aos quatro ventos, por exemplo, que morriam no Brasil, por ano, 200 mil mulheres vítimas de aborto, lembram-se? Este senhor que vos escreve resolveu fazer uma continha boba: busquei saber quantos são os mortos por ano no país e quantos desses mortos são mulheres, identificando as causas, faixa etária dos óbitos etc. O Ministério da Saúde tem uma base dados. O post está aqui. Resultado: essa é uma das mentiras mais escancaradas jamais contadas no Brasil. Pararam com essa balela. De janeiro a setembro de 2011, morreram durante a gestação ou parto 1.038 mulheres. Os aborteiros multiplicam o número por quase DUZENTOS para que sua causa tenha visibilidade. O suposto pensamento politicamente correto (o que há de correto em matar um feto???) adere à causa e sai divulgando a falácia.
A mesma falácia a que se dá curso no caso das drogas. Esses números não existem! Que eu saiba, a maioria dos quase 500 mil presos brasileiros cometeu crimes contra o patrimônio, ainda que eventualmente associados ao tráfico ou ao consumo de drogas. Essa legião de simples consumidores, todos coitadinhos e réus primários, é uma invenção da turma. A Globo deve acionar o seu excelente Departamento de Jornalismo antes de cair nessa esparrela.
Quem apoia e o que se quer?

A campanha tem o apoio da ONG Viva Rio, comandada por Rubens Cesar Fernandes (por que não teria?), da Comissão Brasileira Sobre Droga e Democracia, da Associação Nacional dos Defensores Públicos, da Secretaria Estadual de Saúde do Rio e da Fundação Oswaldo Cruz. Um dos idealizadores da iniciativa é Pedro Abramovay, ex-secretário nacional de Justiça, demitido por Dilma depois que defendeu que os “pequenos traficantes” — e não apenas os usuários de drogas — não fossem presos. Foi a primeira vez que aplaudi a presidente. Reitero: Abramovay quer liberdade também para pequenos traficantes e só perdeu o cargo por isso. Referi-me a ele aqui anteontem. Certas afirmações que não estão amparadas em fatos sobre as drogas podem ser de sua lavra. Ao comentar o Mapa da Violência, por exemplo, e constatar que, em 10 anos, em São Paulo, houve uma queda de mais de 80% de mortos entre zero e 19 anos — quando os índices brasileiros explodiram —, ele não teve dúvida: atribuiu o feito ao… PCC, não à eventual eficiência da política de segurança pública ou à polícia. Com base em quais dados ou pesquisa ele fez tal afirmação? Ele não precisa disso! É um rapaz cheio de ideias. Pratica sociologia e direito criativos.
A campanha da TV, reitero, não deixa claro o que se quer. É a descriminação! Tanto é assim que foi essa a notícia dada pela Folha e reproduzida pelo site do grupo, sem qualquer reparo. Quem noticiou cheia de entusiasmo o lançamento da campanha foi a revista “SemSemente”, dedicada à defesa da legalização da maconha. O texto encerra de modo bastante eloquente (em vermelho):

A veterana Regina Sampaio foi mais além “Eu venho de uma geração bem atrás, quando o assunto das drogas era bem diferente. Hoje ele é uma questão social. Eu sempre fui contra radicalismos, para mim tudo que você faz dentro do seu limite é permitido. Prefiro que meu filho fume maconha do que beba. Tudo que é exagero faz mal, mas eu acho que a maconha não faz mal para ninguém. É muito pior um bêbado em casa do que um cara que fuma unzinho na dele.” Após esse depoimento Rubem Cesar encerrou o evento, restando aos poucos presentes uma mesa farta de croquetes, sanduiches de linguiça e outros quitutes, devidamente atacada enquanto, em off, se rediscutia tudo que foi debatido…
Tudo devidamente compreendido. Não sei quem é Regina Sampaio nem em que ela é “veterana”, mas, dado o seu depoimento, fiquei aqui a imaginar. Mas mais não escrevo.
Estes são os integrantes da Comissão Brasileira Sobre Drogas e Democracia, segundo leio em sua página na internet (volto depois):
Paulo Gadelha – Presidente da Fiocruz; Rubem César Fernandes – Diretor executivo do Viva Rio; Carlos Costa – Liderança Comunitária; Carlos Velloso – ex-ministro do Supremo Tribunal Federal; Celina Carpi – Presidente do Movimento “Rio Como Vamos”; Celso Fernandes – Presidente da Visão Mundial Brasil; Dráuzio Varela – Médico e escritor; Edmar Bacha – Economista e Ex-Presidente do BNDES; Einardo Bingemer – Coordenador do Projeto Latino-Americano de Pesquisa sobre Comunidades Terapêuticas (LATC Research); Ellen Gracie – Ministra do Supremo Tribunal Federal; Joaquim Falcão – Diretor da Escola de Direito da FGV; João Roberto Marinho – Vice-presidente das Organizações GLOBO; Jorge Hilário Gouvêa Vieira – Advogado; Jorge da Silva – Coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro; José Murilo de Carvalho – Doutor em ciência política, professor titular do IFCS/UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras; Lilia Cabral – atriz; Luiz Alberto Gomes de Souza – Sociólogo, liderança leiga da Igreja Católica; Maria Clara Bingemer – Decana da Faculdade de Teologia da PUC-Rio; Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça – Ensaísta e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras; Paulo Teixeira – Deputado Federal; Pedro Moreira Sales – Presidente do Conselho Itaú Unibanco; Regina Maria Filomena Lidonis De Luca Miki – Coordenadora do CONSEG e ex-Secretária de Defesa Social da Prefeitura de Diadema; Regina Novaes – Antropóloga, ex-presidente do Conselho Nacional de Juventude; Roberto Lent – Neurocientista, doutor em ciências e professor titular da UFRJ; Rosiska Darcy de Oliveira – Escritora e co-presidente do movimento “Rio Como Vamos”; Zuenir Ventura – Jornalista.
Não sei se alguém dissente da campanha. Consenso em um grupo tão grande é difícil. Se há dissensões, nada li a respeito — quando eu não concordo com alguma coisa, deixo claro ou caio fora do grupo (caso eu pertencesse a algum — meu grupo é composto de um só; jornalista que pertence a uma turma está querendo é formar quadrilha…). Se ninguém falou nada, então é porque endossa a propaganda.
Lamento! Essa gente está ignorando a realidade e o sentimento da esmagadora maioria do povo brasileiro. Não! Não estou entre aqueles que consideram que maioria ou minoria definem verdade ou mentira. Esse não é o ponto. Fico aqui a pensar o que pensam as mães e os pais pobres (hoje, são todos de “classe média”, segundo a nova mística) do país, que têm de sair de casa, deixando seus filhos aos cuidados da escola, dos vizinhos etc. É evidente que a descriminação das drogas — É O QUE SE QUER, REITERO — provocará uma elevação do consumo e aumentará as chances de uma criança ser exposta a substâncias hoje consideradas ilícitas.
A verdade é que boa parte dos supostos “bem-pensantes” tem sobre o problema uma abordagem que é, sim, de classe social: imagina-se que, nas periferias do Brasil, a droga assume as características do consumo recreativo dos nossos, como direi?, libertários endinheirados.  O flagelo do crack está aí, aos olhos de toda gente. Com ele, não há diálogo possível — ou alguém já descobriu essa pólvora?
Encerro observando que a campanha que está no ar tem ainda claros componentes autoritários: busca convencer pela emoção; não deixa claro qual é seu real propósito e omite a agenda de alguns de seus idealizadores. Na comissão acima, encontro, por exemplo, o deputado Paulo Teixeira (SP), atual líder do PT na Câmara. Uma pesquisa rápida na Internet, e vocês encontrarão este valente a defender o cultivo de maconha em cooperativas. Segundo ele, isso ajuda a combater o tráfico!!! A coca, creio, ele deixa para as cooperativas dos companheiros bolivianos… Está de braços dados com Abramovay, aquele que quer pequenos traficantes fora da cadeia…
Pergunto: uma campanha defendendo outro ponto de vista teria também lugar na TV, uma concessão pública, ou não? Em nome da equanimidade, da pluralidade e da transparência, esse negócio tem de sair do ar.
PS – O lobby de pessoas favoráveis à descriminação das drogas e de consumidores disfarçados de amigos das ideias é fortíssimo. Este texto é meu, não da VEJA. Não sei o que a revista pensa a respeito.  Eu respondo por ele, mais ninguém. É muito tarde, ou muito cedo, para acordar a direção da revista…
PS2 – Não venham os oportunistas de sempre tentar dar truque aqui e usar o caso como pretexto para defender, como é mesmo?, “o controle social da mídia”! Não passarão! Até porque os que querem essa porcaria — Paulo Teixeira é um deles… — são viciados em outra droga: a droga da ditadura e do autoritarismo.
Por Reinaldo Azevedo


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