quinta-feira, 19 de julho de 2012



O psiquiatra inventa doenças e tenta medicar os comportamentos destoantes?


Mais um tributo à ignorância e ao estigma. Mais um desserviço aos milhões de brasileiros que sofrem com algum transtorno mental.
Essa semana, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou a campanha “Não à Medicalização da Vida”. O título, devo confessar, é atraente e consegue mobilizar o nosso repúdio a uma suposta prática higienista da Psiquiatria. Mas em uma leitura um pouco mais atenta, percebemos que o seu discurso é pouco consistente e revela desinformação ou mesmo má fé.

O CFP com frequência se coloca como defensor da população contra os desmandos e o autoritarismo da Psiquiatria – como se nós, psiquiatras, exercêssemos um poder discricionário e tivéssemos como objetivo “domesticar” a população, reduzir as pessoas a uma massa sem crítica, facilmente manipulável.
Dessa vez, o CFP mistifica o papel da Psiquiatria nos cuidados a crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais. Sim! Trata-se de uma mistificação, pois os “argumentos” apresentados não encontram qualquer respaldo na literatura científica – não passam de achismos.
O CFP mirou sua artilharia no TDAH, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Disseram que nós, psiquiatras, confundimos peraltice e dificuldades escolares com transtorno mental e medicalizamos problemas da vida cotidiana. Nessa empreitada, seríamos cúmplices da indústria farmacêutica, que inventa doenças para vender remédios. Um pouquinho de paranoia e de teoria da conspiração cai bem no cinema, mas não no campo da saúde mental.
O TDAH é um distúrbio neurobiológico de causas genéticas, que aparece na infância e geralmente acompanha a pessoa pelo resto de sua vida. Seus principais sintomas são desatenção, inquietação e impulsividade. Todo mundo de vez em quando tem dificuldades de se concentrar, esquece alguma coisa, age de maneira impulsiva. Não é disso que estamos falando (mas é isso que o CFP quer que você ache). Para caracterizar o transtorno, esses sintomas têm que se apresentar com uma intensidade e frequência muito maior do que os pequenos lapsos da vida cotidiana. Além disso, precisam estar presentes em diferentes contextos (em casa, na escola, na vida social) e trazer prejuízos marcantes e sofrimento para o paciente. Caso contrário, não se trata de TDAH e não se tem por que iniciar qualquer tratamento. Uma coisa é sintoma isolado (e todos nós temos vários!). Outra coisa bem diferente é uma síndrome clínica muito bem caracterizada, cujos critérios diagnósticos foram submetidos a anos de pesquisa pelas mais diversas entidades em diferentes países.
O TDAH é um transtorno reconhecido pela Organização Mundial de Saúde e pelas mais diversas associações de médicos e psicólogos em todo o mundo. No Brasil, o TDAH é um distúrbio reconhecido pela Associação Médica Brasileira, Associação Brasileira de Psiquiatria, Academia Brasileira de Neurologia e pela Sociedade Brasileira de Pediatria. A primeira descrição desse quadro clínico foi em 1917.
- Mas o TDAH não foi inventado pela Psiquiatria e pela indústria farmacêutica para vender remédio?
- Bem, a principal medicação utilizada para tratar o TDAH foi sintetizada em 1944, portanto um bom tempo depois de descobrirmos a existência desse distúrbio.
Esse é um quadro, infelizmente, comum. Estima-se que acometa entre 3 e 5% das crianças nas mais diversas regiões do mundo. O que poderia explicar uma taxa tão semelhante entre culturas tão diferentes? Um dos principais argumentos dos críticos é que o TDAH se deve ao modelo escolar, a conflitos psicológicos e a pais ausentes e com dificuldades de impor limites. Como isso seria possível, já que a taxa é mais ou menos a mesma entre sociedades tão díspares?
Hoje sabemos que o indivíduo herda geneticamente a predisposição para o TDAH e que os portadores apresentam uma alteração no funcionamento do lobo frontal e suas conexões com o restante do cérebro. Essa região é responsável pela capacidade de autocontrole, atenção, planejamento e organização. Os fatores escolares e familiares são importantes no desencadeamento do transtorno e na piora da sintomatologia, mas não são a causa.
Quem nega a causação biológica dos transtornos psíquicos acha que mente é uma coisa e que cérebro é outra. Às vezes, parece até que esqueceram que todos nós temos um cérebro e que ele também pode adoecer. Quando o coração adoece, os sintomas são cardiovasculares. Quando o estômago adoece, os sintomas são gastrointestinais. Pois é, quando o cérebro adoece, os sintomas são neurológicos e mentais.
Quanto ao impacto do transtorno, é comum os portadores de TDAH terem prejuízos no desempenho escolar. Isso não quer dizer que todo aluno com dificuldades escolares tenha algum transtorno psiquiátrico. As dificuldades escolares podem ser por diversos motivos e geralmente não têm qualquer relação com a Psiquiatria – nesse caso, não há qualquer motivo para tratamento psiquiátrico. Mas os nossos críticos insistem em dizer o contrário com sua retórica sedutora, porém vazia.
E como é feito o tratamento do TDAH? De acordo com as evidências científicas, a primeira linha do tratamento é o uso de medicação para otimizar o funcionamento do lobo frontal e suas conexões. Associadas ao medicamento, são importantes estratégias a terapia cognitivo-comportamental e a orientação para pais e professores.
O crescimento recente no uso de medicamentos para tratar o TDAH não revela necessariamente um abuso ou exagero nas prescrições médicas. Esse aumento reflete um maior conhecimento sobre a doença e uma maior procura por tratamento. Claro que é possível que algumas dessas pessoas estejam medicadas de maneira inadequada. Infelizmente, essa é uma distorção do nosso sistema de saúde. Quantos usam antibióticos sem ter, de fato, uma infecção bacteriana? Quantos fazem uso inadequado de analgésicos, antiinflamatórios e toda sorte de medicamento? Ao invés de dizer que inventamos doenças e remédios, por que não tentar corrigir essas distorções?
E em relação ao temor de que os medicamentos psiquiátricos são perigosos, viciam, causam mais problemas que os próprios transtornos mentais… Quantos de vocês já tomaram dipirona? Pois é! Nos Estados Unidos, a dipirona é considerada tão perigosa que está proibida de ser comercializada desde 1977. A noção de perigo, portanto, é relativa. Os remédios psiquiátricos não são chazinho ou água-com-açúcar – por isso são controlados. Mas usados conforme a orientação do médico, os riscos são minimizados.
Agora, vem cá: Por que as pessoas que questionam tanto o TDAH não realizam pesquisas com uma metodologia consistente e submetem os seus dados ao crivo da ciência? Por que não publicam os resultados em revistas científicas ou não os apresentam em congressos? Por que não participam de debates e mesas redondas conosco, psiquiatras, onde haja pleno direito de exposição, inclusive do contraditório? Pois é! Tudo não passa de palavras ao vento.
Sinceramente, fico decepcionado e triste com essa colocação do Conselho Federal de Psicologia. Felizmente, a maioria dos colegas e amigos psicólogos têm uma postura bem diferente, com um embasamento clínico e científico de tirar o chapéu!


Site PILULASDEINSIGHT



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