Maconheiro velho.
Dr. Drauzio Varella
Todo maconheiro velho reclama da qualidade da maconha atual. Perto da maconha daquele tempo, dizem, a de agora é uma palha sem graça.
A observação é paradoxal, porque a maconha de hoje tem concentrações muito mais altas de THC, o componente psicoativo da planta, do que as contidas nos baseados de 20 anos atrás.
A queixa procede, no entanto. O THC inalado, ao chegar ao cérebro, libera quantidades suprafisiológicas de neurotransmissores, como a dopamina, associados às sensações de prazer e de recompensa. Como tentativa de adaptação à agressão química representada pela repetição do estímulo, os circuitos de neurônios envolvidos na resposta, sobrecarregados, perdem gradativamente a sensibilidade à droga, produzindo concentrações cada vez mais baixas dos referidos neurotransmissores. Nessa fase, a nostalgia toma conta do espírito do usuário.
É por causa desse mecanismo de tolerância ou dessensibilização que o prazer induzido não apenas pelo THC, mas por qualquer droga psicoativa diminui de intensidade com a administração prolongada. Se é assim, por que o usuário crônico insiste na busca de uma recompensa que não mais encontrará? Por que fraqueja depois de ter jurado parar? Por que alguém cheira cocaína mesmo quando vive o terror das alucinações persecutórias toda vez que o faz?
A resposta está nos circuitos de neurônios responsáveis pela motivação, memória e aprendizado.
Estudos recentes mostram que a memória e o processo de aprendizado, bem como a exposição do cérebro a drogas psicoativas, modificam a arquitetura das sinapses (o espaço existente entre dois neurônios através do qual o estímulo é modulado ao passar), dando início a uma cadeia de eventos moleculares capazes de alterar o comportamento individual por muito tempo.
Esse mecanismo comum permite entender por que a “fissura” associada à abstinência costuma ser disparada por memórias ligadas ao consumo da droga. Conscientemente, o usuário pode decidir tomar outra dose ao recordar a euforia ou a felicidade sentida anteriormente. Outros estímulos podem causar efeito semelhante: a visão do cachimbo de crack, o tilintar do gelo no copo, o esconderijo para fumar maconha. Mas existem lembranças mais abstratas (um cheiro, uma música, um fato, uma luminosidade) que podem induzir à procura da droga mesmo na ausência de percepção consciente.
Não faz sentido falar generalizadamente em “efeito das drogas”, visto que cada uma age segundo mecanismos farmacológicos específicos. Mas, se existe um efeito comum a todas elas, é a estimulação dos circuitos cerebrais de recompensa mediada pela liberação
de dopamina, através da interação da droga com receptores localizados na superfície dos neurônios.
Está fartamente documentado que o bombardeio incessante desses neurônios reduz progressivamente o número de receptores que respondem à dopamina. À medida que o cérebro fica menos sensível à dopamina, o usuário começa a perder a sensibilidade às alegrias cotidianas: namorar, assistir a um filme, ler um livro. O único estímulo ainda suficientemente intenso para ativar-lhe os circuitos da motivação e do prazer é o impacto da droga nos neurônios.
Essa inversão de prioridades motivacionais torna seus atos incompreensíveis. Não é verdade que o adolescente rouba o salário da mãe para comprar crack porque não tem amor por ela; ele o faz simplesmente porque gosta mais do crack.
A maioria dos ex-usuários que se libertaram da dependência de uma droga se queixa de que é preciso lutar pelo resto da vida contra a tentação de recair. Não conhecemos com exatidão os passos pelos quais as drogas psicoativas induzem alterações permanentes no cérebro. Mas os especialistas suspeitam que a resposta esteja nas distorções que elas provocam na estrutura das sinapses.
Nos últimos anos, foi demonstrado que, durante o processo de memorização, surgem novas ramificações nos neurônios. E que esses novos prolongamentos vão estabelecer sinapses duradouras com neurônios da vizinhança, aumentando a complexidade e a versatilidade da circuitaria nas áreas do cérebro que coordenam a memória.
Quando sensibilizamos camundongos à cocaína, ocorre fenômeno semelhante: surgem novas ramificações e novas sinapses, mas nos neurônios situados nas áreas que controlam os sistemas de recompensa e de tomada de decisões.
Os circuitos envolvidos no aprendizado e na memória estão sendo vasculhados pelos que estudam a neurobiologia da adição. A partir deles, talvez possamos entender por que alguns experimentam drogas para viver uma experiência agradável e não se tornam dependentes, enquanto outros transformam seu uso em compulsão destruidora.