Gatilhos dos vícios
Pesquisa
publicada no British Medical Journal revela como algumas condutas aparentemente
inofensivas servem como estímulos para péssimos hábitos. Uma das mais polêmicas
conclusões é de que filmes com consumo de álcool incentivam esse tipo de ação
Algumas
pequenas atitudes, para pessoas que têm tendência a vícios, podem servir como
irresistíveis estopins para maus hábitos. Uma inocente xícara de café, por
exemplo, é o suficiente para despertar a vontade quase irresistível de acender
um cigarro em fumantes. O mesmo ocorre com bebida alcoólica, dupla quase inseparável
do cigarro. De acordo com um estudo publicado no British Medical Journal e
feito pela Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, alguns comportamentos
podem, até mesmo, provocar o surgimento de vícios. Adolescentes que costumam
assistir a filmes em que os atores consomem álcool, segundo os pesquisadores,
têm duas vezes mais chances de começar a beber que jovens que não o fazem — e
apresentam 63% mais chances de evoluírem para o binge drinking, termo cunhado
para designar consumidores excessivos de álcool.
Durante
dois anos, cerca de 6,5 mil crianças e adolescentes de 10 a 14 anos foram
entrevistados sobre o consumo de álcool (se já haviam bebido ou não) e fatores
que influenciariam o surgimento do vício, como ambiente doméstico com fácil
acesso à bebida, comportamento dos pais em relação ao álcool e rebeldia
pessoal. As cobaias assistiram a 532 filmes e foram orientadas a selecionar 50.
Os pesquisadores mediram o tempo das cenas com consumo de álcool, bem como as
imagens em que apenas a marca das bebidas foi mostrada.
Ao
todo, os adolescentes ficaram expostos a uma média de 4,5 horas de cenas que
mostravam o uso de álcool. Em alguns casos, dependendo dos filmes selecionados,
esse número dobrou. Os pesquisadores, então, descobriram por meio de questionários
posteriores que os jovens que selecionaram filmes em que os personagens eram
alcoolistas foram aqueles que estavam duas vezes mais propensos a beber também.
Além disso, 28% dos que passaram a ingerir álcool admitiram que se espelharam
nos astros.
Ao
longo dos 24 meses de estudo, a proporção de adolescentes que começou a beber
dobrou: o índice dos que afirmaram já ter experimentado álcool passou de 11%
para 25%. E o cinema não serviu apenas como ponto de partida para o vício. Os
jovens que passaram a consumir álcool em excesso, ou seja, mais de cinco doses
de bebida seguidas, triplicaram de 4% para 13%. A influência do comportamento
dos pais dentro de casa foi, de acordo com o trabalho, uma das explicações para
os resultados alarmantes. “O uso de álcool pelos pais foi relatado por 23% dos
entrevistados, enquanto 29% deles disseram que poderiam obter álcool em casa
com facilidade”, escreveram os condutores do estudo.
Colecionar
roupas, chaveiros e outros objetos com marca de bebida também foi um dos fatores
apontados como estimulante para o alcoolismo. A convivência com amigos que
bebem e, claro, a própria personalidade dos entrevistados também contaram para
a inclinação ao copo. Se o cinema dá vontade de beber, beber dá vontade de
fumar. Outro estudo, feito pela Universidade de Otago, na Nova Zelândia,
descobriu o que muitos frequentadores de bares já sabiam: a bebida alcoólica é
um catalisador para o tabagismo. A presença de amigos fumantes, assim como no
caso de bebidas alcoólicas, também funcionou como um incentivo para o ato de
fumar.
O
estudante Ítalo Martins, 23 anos, admite que a vontade de fumar e beber depende
do contexto em que se encontra no momento. O clima propício do bar, o gosto da
cerveja e a presença de amigos fumantes são os principais fatores que o levam a
acender um cigarro, por exemplo. “Já aconteceu de me dar vontade de fumar
depois que vi alguém fumando em filmes, propagandas e até desenhos animados”,
descreve. “Penso imediatamente em como seria tragar aquela hora.” O estudante,
contudo, não concorda que apenas assistir a pessoas consumindo álcool ou
tabaco, em filmes ou na vida real, seja um fator forte o suficiente para
desencadear o vício em quem quer que seja. “É um momento de descontração”,
justifica. “Vejo as pessoas fumando, mas isso não significa que eu vá fumar. Só
acho que bar e balada têm a ver com cigarro.”
Influência
do lugar
Janet Hoek, professora do Departamento de Marketing da Universidade de Otago e
uma das principais autoras do estudo, diz que muitos “fumantes sociais” —
pessoas que só sentem vontade de fumar quando saem para festas, reuniões ou
ocasiões específicas — nem mesmo gostam de cigarro. “Praticamente todos
disseram que fumam porque querem fazer parte do grupo ou porque não querem que
um fumante da turma se sinta alienado quando ele ou ela precisa ir para fora do
estabelecimento para fumar”, detalha Janet. Ter que se deslocar do local onde
todos estão reunidos parece um esforço desnecessário para quem não tem uma
grande dependência de nicotina.
A
dificuldade para encontrar um lugar para obter seu cigarro preferido faz com
que Fernanda Akel, 30 anos, só fume quando está em terra. Fernanda é hoteleira
e chega a passar seis meses no navio em que trabalha — período no qual dispensa
a nicotina. Para ela, barreiras como essa ajudam a manter o vício sob controle.
“Se não houvesse área de fumantes em lugar nenhum, eu não fumaria ou, pelo
menos, não fumaria quase nunca”, opina. O quesito “social” do ato de fumar é,
para ela, outro fator que dá impulso ao ímpeto de acender um cigarro. “Às
vezes, você nem quer fumar, mas quase todos os seus amigos estão na área de
fumantes, então você vai lá curtir com eles e acaba fumando também.”
Assim
como Fernanda, Janet Hoek diz que muitos “fumantes sociais” não se consideram,
propriamente, fumantes. Seguindo a pesquisadora, isso acontece porque eles têm
definições mutantes de si mesmos, que variam de acordo com situações
específicas, para que eles continuem encarando a si mesmos como livres do
vício, como uma autodefesa. “Muitos não fumam sozinhos, não compram tabaco e
afirmam que ‘escolhem’ quando querem fumar”, exemplifica. A crise de identidade
que se segue a uma sessão de consumo intenso de álcool e tabaco vira uma bola
de neve: o remorso dá origem ao conflito entre como eles se sentem (não
fumantes) e o que fizeram. “Eles lidam com isso usando o álcool para explicar e
justificar tal comportamento, e também para liberá-los para fazer tudo de novo,
repetidamente.”
O
hábito de sair à noite com os amigos para tomar uma cerveja é um dos programas
que mais deixavam a radialista Joana Praia, 36 anos, com vontade de fumar.
Essas ocasiões, contudo, não foram o motivo que a levaram a se tornar uma
fumante social: desde a infância, ela já estava acostumada a ver a mãe fumando
cerca de 60 de cigarros por dia. Na adolescência, veio a vontade de
experimentar o tabaco — mas ela garante que nunca se tornou uma viciada. “Nunca
fumei todos os dias, só quando saía”, reforça. “Acho que algumas pessoas são
mais propensas a se viciar.” Desde o início da gravidez da filha, hoje com 9
anos, Joana não fuma. Além do novo estilo de vida, mais “tranquilo e caseiro”,
o câncer de pulmão da mãe, diagnosticado há sete anos e já curado, serviu como
alerta. “Minha família inteira também parou de fumar.”
Inclinação
biológica
Além das influências ambientais, como familiares e amigos fumantes ou locais
propícios, uma pesquisa publicada em abril do ano passado na revista
especializada Biological Psychiatry descobriu que certas combinações genéticas
podem ser as responsáveis pelo vício em tabaco. Os adolescentes analisados no
estudo que tinham variantes de dois tipos de genes relacionados à dopamina e
aos codificadores de subunidades dos receptores nicotínicos colinérgicos tinham
três vezes mais chances de tornarem-se fumantes regulares na adolescência e
corriam duas vezes mais risco de continuarem tabagistas quando adultos.
Três
perguntas para Sueli Danergian, professora de psicologia das relações humanas
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
Filmes
podem mesmo influenciar o início e a progressão de vícios, como o alcoolismo ou
tabagismo?
Se você submete crianças a jogos e filmes violentos, isso estimula a
agressividade de certas áreas cerebrais. Isso não quer dizer que influencia
diretamente, mas há uma associação. Você induz a criança a agir daquela
maneira. Antigamente, as pessoas eram muito influenciadas pelos atores e
atrizes de Hollywood. Fumar era considerado charmoso, uma coisa chique. As
pessoas viam os atores como se eles fossem mais importantes, e muita gente
começou a fumar por causa disso, para imitá-los.
Outros
fatores também podem influenciar o início de vícios, como o comportamento de
pais que bebem ou fumam?
Sim, muitas crianças são inclusive iniciadas pela própria família. Já vi alguns
casos de pais que até incentivam os filhos a beber. A propaganda também
incentiva muito. Quanto mais ela acontece, mais o vício se instala. E as
propagandas estão ficando cada vez mais incisivas. As de cerveja, em que as
pessoas “louvam” a bebida, são um exemplo disso: as empresas estão apelando
para que as pessoas não resistam às drogas, como cigarro e bebida. O cinema é
um dos recursos apelativos da propaganda, já que é muito fácil que aconteça a
identificação com esses ídolos. Aí, há um comportamento iniciativo, um estímulo
a fazer também.
Como
explicar a existência de “viciados ocasionais”, como no caso dos fumantes
sociais?
Cada fumante social tem seu próprio processo. Algumas pessoas acham que é
bonito, charmoso. Já ouvi de algumas pessoas que fumar dá um certo status, que
faz com que elas se sintam diferentes dos outros. Mas isso não tem nada a ver.
Certos indivíduos se apegam a coisas pouco significativas, como essas. No caso
dos fumantes sociais, estar em uma roda em que só eles não fumam faz com que eles
se sintam diminuídos e pensem que são consideradas menos importantes. Elas não
percebem que, fugindo do modismo, demonstrariam personalidade. As pessoas acham
que isso é bonito, mas o ideal é conseguir resistir ao que é modismo e afirmar
a própria identidade sem que ela precise ser galgada na intimidação do
comportamento dos outros. É mais difícil manter princípios e valores do que
“seguir a onda”.
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