A
PRÁTICA DE BINGE DRINKING ENTRE JOVENS E O PAPEL DAS PROMOÇÕES DE BEBIDAS
ALCOÓLICAS: UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA.
O uso nocivo do álcool é
responsável por cerca de 3,3 milhões de mortes no mundo, a cada ano.1 As
comparações temporais das estimativas da carga global de doenças atribuíveis a
diferentes fatores de risco sugerem que as mortes e os anos de vida perdidos
ajustados por incapacidade (Disability-Adjusted Life Years [DALYs]) atribuídos
ao álcool têm aumentado nas últimas décadas, em nível mundial. Essas alterações
levaram a um incremento na posição do álcool no ranking das principais causas
de morte e de incapacidade no mundo, passando do oitavo lugar, em 1990, para o
quinto lugar, em 2010. Os dados disponíveis sugerem que o uso nocivo do álcool
é o principal fator de risco para morte e incapacidade de pessoas entre 15 e 49
anos de idade, em diversos países.2
Destaca-se o fato de a
severidade das consequências do uso de álcool depender da frequência e das
quantidades consumidas.3 Um padrão de consumo de risco que tem despertado
interesse internacional e, apenas recentemente, começou a ser investigado no
Brasil, é o denominado binge drinking (BD),4 ou ‘beber pesado episódico’.5 Este
padrão costuma se caracterizar pelo consumo de no mínimo quatro doses de álcool
em uma única ocasião, para mulheres, e cinco doses para homens, o que leva a
uma concentração de etanol no sangue de 0,08% ou superior.6 No entanto, a
definição de BD é controversa, permeada por conflitos de conceituação
influenciados pela cultura de uso e aspectos farmacocinéticos do álcool.7,8
Tais episódios de uso
abusivo agudo de álcool não apenas influenciam a mortalidade geral, também
contribuem para agravos à saúde, particularmente aqueles decorrentes de
acidentes9 e agressões,10 colocando em risco o intoxicado e a coletividade.
Entre a população geral, o BD está associado a maiores ocorrências de abuso
sexual, tentativas de suicídio, sexo desprotegido, gravidez indesejada, infarto
agudo do miocárdio, overdose alcoólica, quedas, gastrite e pancreatite.11
Trata-se de uma questão
todavia pouco estudada na população brasileira,12 apesar de sua relevância no
campo da Saúde Pública. O primeiro levantamento nacional dos padrões de uso de
álcool no Brasil, realizado em 2005-2006, identificou uma prevalência de BD no
ano anterior à pesquisa de 28% em adultos, 40% nas faixas etárias de 18 a 24
anos13 e 53% entre os adolescentes do sexo masculino.14 Estudo realizado em
2010, com estudantes do Ensino Médio das 27 capitais do país, revelou uma prevalência
de 32% de prática de BD naquele ano, maior entre os adolescentes mais ricos e
nas regiões Norte e Nordeste.15
Apesar de o álcool ser uma
droga lícita, sua venda e fornecimento a menores de 18 anos são proibidos por
lei no Brasil (Lei federal no 13.106, de 17 de março de 2015).16 Essa proibição
não extinguiu a prática, tampouco o consumo do álcool entre adolescentes;
porém, há evidências de que o aprimoramento das leis contribuiu para a redução
do consumo de bebida alcoólica entre adolescentes brasileiros a partir do final
da década de 1980.17
Bares e “baladas” são o
principal local de escolha para a prática de BD pela população geral18 e por
estudantes.19 Mundo afora, esses estabelecimentos são conhecidos como locais de
consumo intenso de álcool, e de outras drogas.20 Contudo, pouca atenção tem
sido dada a esses ambientes enquanto locais de risco e exposição extrema à
prática de BD e de outros comportamentos associados.
O beber em binge também é o
comportamento de risco mais prevalente em baladas na cidade de São Paulo-SP.
Estudo realizado no ano de 2013,21 entre jovens dessa cidade acessados em
baladas dos mais diferentes perfis, evidenciou que cerca de 30% dos
entrevistados saiu dos estabelecimentos com dosagem alcoólica no sangue
equivalente à prática do BD. Nas baladas, essa prática aumentou em 9 vezes,
para homens, e 5 vezes, para mulheres, a chance de sofrer apagão, ou seja, não
saber o que lhes ocorreu após a saída do estabelecimento, quando comparados a
“baladeiros” que beberam mas não praticaram BD. O mesmo estudo evidenciou que
as baladas open bar favoreceram a prática de BD em ambos os sexos. O fato de os
estabelecimentos que adotam o sistema de open bar cobrarem uma quantia fixa (em
geral, baixa) e permitirem que se beba em quantidade ilimitada, por toda a
noite, faz com que seus frequentadores se sintam compelidos a beber o máximo
que podem, fazendo jus a seu gasto comprometido.22
A estratégia de donos e
gerentes de bares e baladas é focar no estímulo ao consumo excessivo de álcool
de maneira a atrair mais clientes, que, na maior parte das vezes, acabam
escolhendo o estabelecimento, para o qual se dirigirão durante a noite, de
acordo com as melhores ofertas de consumo de álcool.23 São exemplos desse apelo
as promoções de venda de álcool que passam pela prática do open bar, consumação
mínima (taxa fixa, paga na entrada do estabelecimento, que pode ser convertida
em bebida alcoólica; caso o valor não seja consumido, ele não é devolvido ao
cliente), promoções como ‘pague 1 e leve 2’ e combos - venda combinada - de
destilados (em geral, vodca) e energéticos, em que a compra da combinação de
produtos acaba sendo vantajosa financeiramente, frente à venda de cada produto
isolado. Cabe informar que a cobrança de consumação mínima, apesar de
amplamente difundida em casas noturnas, é uma forma de venda proibida pelo
Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990),24
caracterizada pela lei como uma prática de venda abusiva porque o cliente paga
o valor mínimo cobrado mesmo que não consuma o equivalente em bebida; ou seja,
paga por algo que não recebe. Nesse sentido, é fundamental que haja
fiscalização para cumprimento da lei. A venda combinada de destilados e
energéticos, outro exemplo de abuso, deve ser rigorosamente reprimida, além do
que os energéticos mascaram os efeitos depressores da bebida e aumentam o
apetite pelo álcool, estimulando o consumo de doses muito maiores do que as
toleradas pelo organismo. O consumo combinado foi identificado como preditor da
prática de BD.25
O open bar é a forma de
venda de bebida alcoólica mais associada a um consumo intenso de álcool no
país22 e no exterior.26 No Brasil, a venda de álcool em open bar é permitida e
amplamente difundida. No passado, houve a tramitação de um projeto de lei com o
objetivo de proibi-la (PL nº 3414/2008), entretanto arquivado. É crucial que a
sociedade passe a debater a adequabilidade desse tipo de diversão, responsável
por muitas intoxicações alcoólicas, casos de estado de coma - grau máximo de
alteração da consciência provocado pelo excessivo consumo - e inclusive morte.
Estudos internacionais
evidenciam que o excesso de ingestão de bebidas alcoólicas nas casas noturnas e
bares está associado a mais episódios de agressão física,27 comportamento
sexual de risco,28 violência sexual,29 acidentes de trânsito nos arredores30 e
atos violentos nas ruas, sem mencionar as diversas ocorrências de violência
dentro de estabelecimentos de lazer noturno, afetando os jovens frequentadores
e a comunidade.31-32
A violência nesses
estabelecimentos se manifesta nos moldes de uma relação complexa entre
características pessoais dos frequentadores, padrões de consumo de álcool e
outras drogas, fatores ambientais, conduta dos funcionários e tipo de local,33
e só pode ser efetivamente reduzida com a aplicação de medidas que visem
diminuir a quantidade de doses de bebida alcoólica consumidas.34 Estudo
realizado no ano de 2007, em contextos recreativos noturnos na Espanha,
verificou que 45% de seus frequentadores haviam se embriagado mais de 2 vezes no
último mês, e 23% tinham se envolvido em brigas no último ano, dentro desses
estabelecimentos.27
Diante das evidências,
faz-se necessária intervenção imediata para que os danos individuais e sociais
decorrentes da prática de BD sejam reduzidos. Sabe-se que a melhor forma de
prevenir os danos associados ao abuso de álcool em uma comunidade é a
implantação de políticas públicas em diversas dimensões, sendo a taxação sobre
a venda de álcool e o controle de vendas as que têm demostrado maior sucesso,
segundo estudos internacionais, seguidas de políticas de restrição severa na
propaganda de bebidas alcoólicas.35 No caso dos frequentadores de bares e
baladas, políticas na forma de leis que proíbam a venda de bebida alcoólica
para pessoas já embriagadas seriam importantes do ponto de vista da proteção
imediata, individual e coletiva.36 Em diversos países, uma das legislações mais
efetivas na prevenção dos danos causados pela intoxicação alcoólica é o
controle da densidade de locais licenciados para a venda de bebidas alcoólicas,
impondo-se um limite ao número de estabelecimentos que vendam álcool em cada
região administrativa da cidade.37 No Brasil, um primeiro passo a ser dado
seria o de estabelecer a necessidade de licença diferenciada aos
estabelecimentos, para venda de álcool. É mister que tanto o controle na
expedição das licenças de venda como a taxação aumentada sobre os produtos
alcoólicos sejam fiscalizados de maneira adequada, para não estimular a venda
ilegal por ambulantes que se aglomeram em frente a bares e baladas, oferecendo
bebidas de procedência duvidosa e a preços muitas vezes irrisórios. O controle
de licenças para venda, portanto, é o passo anterior a todas as demais
políticas públicas reconhecidamente efetivas, voltadas à redução dos danos associados
ao abuso de álcool.
As mudanças necessárias não
são de fácil consecução e podem não contar com suficiente apoio social, pois
confrontam a cultura do beber ao extremo, amplamente difundida no país.
Portanto, o êxito das medidas que visam regular o comércio do álcool depende,
primeiramente, da escolha de políticas baseadas em evidências, além do amplo
apoio público e político para que a implantação de uma legislação preventiva do
consumo abusivo de álcool seja bem-sucedida no Brasil.
Zila M. Sanchez1
Universidade Federal de São
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