“STENDHAL”
QUER SABER POR QUE A IMPRENSA É TÃO SIMPÁTICA À CULTURA DAS DROGAS.
Ele era Jimi Hendrix por causa das drogas ou
apesar delas?
Um
leitor que se identifica como Henri-Marie Beyle — é claro que ele está
brincando, né?, porque esse era o nome verdadeiro do grande Stendhal! — envia
uma pergunta: “Reinaldo, por que a imprensa brasileira é tão condescendente com
programas que, em vez de combater a dependência química, a reforçam? De onde
vem isso?”
Xiii,
meu caro Stendhal!!! A resposta não é simples. Não se esgota em um post. Não se
esgota em milhares.
Na
base dessa convicção estúpida, está a maconha, que ganhou o estatuto, e não só
no Brasil, de uma categoria de pensamento. A repressão ao consumo dessa droga é
confundida com o cerceamento, acredite!, da liberdade de expressão. Por quê?
Parcela considerável dos, vá lá, contestadores do establishment nos anos 1960 e
1970 — especialmente na Europa e nos EUA — consumiam maconha; a erva era tida
como expressão de rebeldia, da luta “contra o sistema”. Diga-me, meu caro
Stendhal: há coisa mais patética do que maconheiro velho posando de rebelde em
pleno 2014? Contra quê? Contra quem?
Como
já escrevi aqui há muito tempo, e Ferreira Gullar voltou a lembrar em artigo
recente na Folha, a geração que tomava a maconha como símbolo da liberdade
está no poder no Brasil e no mundo. Para muitos, reprimir o seu consumo parece
corresponder à morte de um sonho. Não é o caso de Dilma, por exemplo. A droga
que ela consumia era outra; suas alucinações eram de outra natureza, como
sabemos bem. Ela não consumia mato seco, mas Carlos Lamarca; não pensava na
sociedade sem estado, mas na ditadura comunista. De todo modo, pertence, a
exemplo de FHC, àquela geração que queria mudar o mundo — no caso dos
comunistas, para muito pior. Mas a versão que passou para a história foi outra.
Não quero perder o fio. Retomo.
Os
apologistas da maconha, ainda que por razões sentimentais, não têm como
argumentar logicamente que essa droga deva ser descriminada ou legalizada sem
que o mesmo aconteça com as demais. Até porque o principal argumento — de que a
proibição só alimenta o poder do narcotráfico — só para de pé se todas as
substâncias hoje consideradas ilegais forem liberadas. Todo mundo sabe que a
maconha está longe de ser a principal fonte de renda dos carteis internacionais
de droga. Ainda é a cocaína.
Assim,
o primeiro pilar em que se sustenta a cultura da droga é a suposta defesa da
liberdade individual.
Já
escrevi aqui que acho esse discurso sedutor e que tenderia até a aderir a ele
não fosse o fato de que as consequências do consumo da droga recaem sobre o
conjunto da sociedade. Não por acaso, os mesmos que advogam a descriminação
dessas substâncias não tardaram a aderir à “medicalização” do discurso, fazendo
uma curiosa fusão de leituras do mundo que, em si, são contraditórias.
Se a
droga deve ser vista como matéria de liberdade individual, de escolha, então a
dependência — em qualquer grau — tem de ser encarada como consequência dessa
opção, certo? Mas quê… A um só tempo, os partidários da descriminação gritam
“liberdade para consumir!” e “tratamento público e gratuito para os dependentes”.
A cidade de São Paulo, como se sabe, acaba de dar um passo rumo ao abismo:
passou a financiar com dinheiro público o consumo de crack. Ainda que se tente
dourar a “pedra”, a consequência é essa.
A
cultura da droga tem, então, na ‘medicalização” do discurso o seu segundo
pilar, que convive, num milagre da engenharia argumentativa, harmoniosamente
com o outro, o da liberdade individual. Ora, ora, pressuposto do exercício da
liberdade é que o indivíduo arque com as consequências de suas escolhas, certo?
Não no caso das drogas.
E há
um terceiro pilar, talvez o mais deletério deles porque não pode ser submetido
a nenhuma forma de abordagem racional. Consolidou-se o mito estúpido,
especialmente dos anos 1960 para cá — quando setores importantes da academia e
da imprensa resolveram marginalizar a alta cultura em favor da rebeldia pop —,
de que as drogas são uma espécie de portal para áreas mais profundas da
consciência, de onde se poderiam extrair verdades, que de outro modo, não
viriam à tona; onde aconteceriam, sei lá, sinapses que não se realizariam sem o
concurso daquelas substâncias.
Combater,
então, o consumo de drogas — ou tentar impedi-lo — seria como vetar o acesso a
uma intimidade de verdades recônditas; seria como censurar o “eu profundo” que
habitaria cada um de nós. Pior: no universo da cultura pop, a droga é
considerada a causa da “genialidade” dos artistas. Ora, uma abordagem racional,
objetiva, técnica indicaria, citarei alguns, que Janis Joplin, Jimi Hendrix,
Jim Morrison ou Kurt Cobain “aconteceram” APESAR DAS DROGAS, JAMAIS POR CAUSA
DELAS.
Não é
esse, no entanto, o saber firmado inclusive em setores da imprensa que escrevem
a respeito. Há uma deletéria e maléfica glorificação, ainda que sub-reptícia e
um tanto oblíqua, do vício. A droga se torna, assim, uma espécie de valor
simbólico, que seduz adolescentes e jovens, levando-os muitas vezes a crer —
por mais que tentem sofisticar o discurso — que, se consumirem as mesmas
porcarias que aqueles consumiam, conseguirão, senão a mesma projeção, ao menos
a mesma, vá lá, “profundidade’. Ora, é evidente que as drogas não fizeram com
que as pessoas acima citadas se tornassem o que se tornaram na cultura pop. As
drogas as mataram — de vício ou bala.
E a
imprensa? Seu papel é mesmo vigiar o poder, contestá-lo, apontar ineficiências
e desmandos. Tomar, no entanto, a ilegalidade das drogas como expressão de uma
vontade autoritária do “poder” é uma simplificação estúpida. Programas como o
de Fernando Haddad — ainda que essencialmente irracionais e contraproducentes,
porque resultará numa elevação do consumo de drogas — são bem-recebidos pelos
jornalistas, independentemente de seus méritos, porque lhes parece que o estado
teria, finalmente, decidido se reconciliar com a sociedade, numa abordagem
supostamente “humana” da questão. Afinal, ele concilia o exercício do suposto
“direito” de consumir (nota: não existe esse “direito”) com a devida
assistência.
Mais:
na prática, a Prefeitura descrimina o consumo das substâncias ilícitas e “abre
os braços” para os dependentes, o que reforça aqueles três pilares sobre os
quais se assenta a cultura da droga: a liberdade, a assistência e a nova
sensibilidade.
Por
Reinaldo Azevedo
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