Teimosia empedernida.
Jornal Folha de
S. Paulo
A falta de noção às vezes vem disfarçada de boas intenções. É o caso da lei
que prevê penas maiores para traficantes, que acaba de ser aprovada pela Câmara
e vai à votação no Senado.A proposta do projeto original era ampliar a pena mínima até para o contingente formado pelos que trabalham com quantidades pequenas ou vendem droga para custear a parcela que consomem.
Por sorte, o bom senso da parte do governo rejeitou a ideia de trancafiar essa legião de pequenos contraventores. Nem que transformássemos todas as escolas públicas em presídios haveria vaga para tanta gente.
Você, leitor, que, como eu, morre de medo de ter um filho escravo da dependência química, gostaria de ver os vendedores na cadeia. Provavelmente, imagina que, se aprisionássemos todos, o adolescente não teria de quem comprar.
Não menosprezo nem condeno esse pensamento mágico; já fui vítima dele. Depois de 24 anos em contato com traficantes e cadeias, minha visão mudou.
Mandar para trás das grades quem vende quantidades pequenas é medida insensata, pela mais singela das razões: quem usa, trafica. Seu filho que fuma um baseado de vez em quando sem você saber sai para comprar, e traz um pouco para o amigo. Por uma besteira dessas, mereceria passar anos enjaulado num presídio brasileiro?
Agora, vamos à questão daqueles que comandam grupos criminosos. Segundo o novo projeto, devem ser condenados à pena mínima de oito anos, em vez dos cinco anos previstos na lei atual.
Todos concordam que deveríamos prender os chefes. É voz corrente que a repressão não funciona, porque só vai presa a raia miúda.
Por que será, não?
A competência corruptora do traficante endinheirado está longe de ficar restrita ao suborno do policial corrupto. Seus tentáculos chegam aos três Poderes da República. Os milhões de reais movimentados pelo tráfico são lavados nos mesmos bancos em que você e eu depositamos o salário ganho com o suor de nossos rostos.
Aumentar as penas para combater o tráfico é uma falácia. Pode ter apelo eleitoral, mas serve apenas para dar às famílias a ilusão de que serão protegidas.
Como bem lembrou o professor André Mendes, nesta Folha (em 29/5/13), a pena mínima estabelecida em 1976, que punia os traficantes com três anos de cadeia, foi aumentada para cinco anos, em 2006. De lá para cá, caiu o consumo de drogas no país?
Você poderia argumentar que se prendêssemos os grandes, pelo menos a criminalidade diminuiria. Não é o que os estudos mostram, caro leitor.
Como em outros ramos da atividade econômica, o grande traficante começa pequeno. Salvo exceções, costuma chegar às posições de mando perto dos 40 anos, quando a maturidade já lhe ensinou que resolver os problemas à bala é menos lucrativo do que tentar solucioná-los por meio da negociação.
Quando um chefe é preso ou morre, seus subordinados se matam para assumir o posto. Por ocasião dessas lutas pelo poder, muitos inocentes perdem a vida.
Qual a solução?
Nas transações comerciais, enquanto existir um mercado consumidor em expansão, disposto a pagar qualquer preço por uma mercadoria que custa barato nos centros de produção, o impacto do aprisionamento de comerciantes será pífio. Oferta e procura é uma lei universal. É ingenuidade irresponsável supor que será revogada com medidas repressivas, por mais lógicas e bem-intencionadas que pareçam.
Sem diminuir a procura, aumentar as penas dos traficantes só servirá para agravar o drama da superlotação das cadeias. Se no Estado de São Paulo há que se construir quase cem penitenciárias apenas para cobrir o atual deficit de vagas --além de mais duas a cada três meses para trancafiar os que serão presos pela polícia--, imaginem a calamidade enfrentada pelos Estados mais pobres.
Quantos anos serão necessários para nos convencermos de que a guerra às drogas foi um equívoco com consequências desastrosas para a sociedade?
Quantos precisarão morrer até entendermos que dependência química é um problema de saúde pública que jamais será resolvido na base da repressão policial?
Nos últimos 30 anos, os americanos investiram mais de US$1 trilhão nessa guerra. Tanto dinheiro, para criar o maior mercado consumidor do mundo.
Drauzio Varella é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro "Estação Carandiru" (Companhia das Letras). Escreve aos sábados, a cada duas semanas, na versão impressa de "Ilustrada".
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