O CRACK COMO 1º EMPREGO.
Wagner Sarmento.
Um sonhou ser
mecânico, o outro quis ser motorista ou jogador de futebol, uma jovem se
imaginou administradora de empresas, outra adolescente pensou em se tornar
servidora pública. A vida traiu os planos, desviou rotas e os colocou no mesmo
liquidificador. As quatro histórias tiveram começos distintos, mas se cruzaram
no meio do caminho. Eles não se conhecem e mesmo assim estão unidos por uma
coincidência: o primeiro emprego que conseguiram foi no narcotráfico.
Funcionários do crack sociedade anônima, assinaram carteira com o dinheiro
fácil. E com o desengano.
A Pesquisa de
Emprego e Desemprego (PED) – desenvolvida pelo Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) – aponta que 27% dos jovens de
16 a 24 anos moradores da Região Metropolitana do Recife estão desempregados. O
Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que
811.446 pernambucanos entre 15 e 24 anos fazem parte da população
economicamente ativa.
Há, contudo, um
exército difícil de contar. Crianças e adolescentes que pesquisa nenhuma
alcança nem tipifica. Gente que até sonha com um futuro melhor, mas que é
encurralada pelo presente para a violência. O Jornal do Commercio entrou nos
presídios e casas de apoio para conhecer as histórias de quatro pessoas, dois
homens e duas mulheres, que abandonaram os estudos, os projetos de vida e a
dignidade, recrutadas por um ramo que promete lucros exorbitantes e, no
entanto, também estigmatiza, consome e tira a paz.
Henrique, Marcelo,
Cláudia e Fabiana são seus nomes fictícios. A teia do mundo do crime os impede
de mostrar o rosto. Relatam trajetórias ocultas e recorrentes, que são suas e
de tantos outros que, ainda meninos, largam os estudos e são arregimentados
pelo tráfico de drogas. Henrique foi chefe de boca de fumo com apenas 12 anos.
Marcelo virou gerente de cocaína da favela no auge de sua atuação. Cláudia
começou traficando e acabou acusada de homicídio. Fabiana entrou no negócio
influenciada pelo namorado.
Todos viviam em
comunidades carentes, tinham famílias desajustadas e enxergaram no narcotráfico
uma chance de mudar de vida. Todos comercializavam de tudo, mas logo focaram as
atenções e os investimentos no crack, droga que, segundo eles, passou a vender
feito água nos últimos dez anos, pelo baixo preço e pela alta dependência que
causa. Todos estiveram rodeados de armas, de sangue, de medo.
Henrique foi o caso
mais precoce que a reportagem encontrou. Tinha só 8 anos quando foi sugado pelo
crime. Mal sabia sobre a vida, mas a droga sempre foi inquilina. Estava em
casa, na vizinhança, debaixo do nariz, tão arraigada a seu cotidiano que ele
passou a fazer parte da engrenagem sem nem perceber. Nos outros casos, o
ingresso no tráfico se deu da mesma maneira.
Nenhum chegou a
concluir os estudos. O ensino fundamental incompleto é prova de que o crack
roubou a infância e a oportunidade de vencer pelos meios lícitos. Cada um
cumpriu uma função distinta no organograma do crack. Henrique começou como
avião (quem leva a droga), fazendo bicos, e se tornou patrão. Marcelo era braço
direito do dono da boca, que gerenciava o negócio de dentro de um presídio.
Cláudia trabalhou como embaladora e administradora. Fabiana atuou como mula,
fazendo o transporte interestadual da pasta-base da qual deriva a pedra da
morte. O narcotráfico, assim como qualquer outro ramo, tem uma hierarquia
definida com cargos, responsabilidades e salários diversos.
Henrique, Marcelo,
Cláudia e Fabiana comungam do mesmo arrependimento. O mercado do crack rendeu
um bom dinheiro, é verdade. Deu luxo, roupas, joias, noitadas. O preço,
entretanto, foi alto demais. Acabaram presos. Eles, viciados na pedra e
ameaçados de morte. Elas, longe dos filhos. A droga deu tudo e tirou tudo.
SOLDADO AOS 8,
LÍDER AOS 12
Henrique tinha só 8
anos de idade. Botava a mochila nas costas e saía de bicicleta a desbravar as
ladeiras do morro onde morava, na periferia do Recife. No meio dos livros,
crack e maconha. O menino sem noção alguma do que era a vida, sem tamanho para
trabalhar, no auge da infância, era explorado como soldado do narcotráfico. Mal
teve tempo de sonhar em se tornar jogador de futebol.
O desajuste
familiar dava guarida ao erro. O pai espancava a mãe e levava a criança para as
gafieiras que frequentava. A bebida e a droga faziam parte da rotina. Cansado
de “comer cuscuz e chá o dia todo”, entrou para o crime. A pouca idade fazia
dele um recruta insuspeito. O garoto logo ganhou a confiança do chefe da boca
de fumo. Aos 12 anos, foi promovido a líder do tráfico. O lucro pipocou. Às
vezes, chegava a R$ 2 mil por dia. A inveja regou inimigos. Ele ignorava os
desafetos, estava protegido pelo mandachuva. A mãe perguntava de onde o filho
tirava tanto dinheiro, o menino desconversava, até que ela descobriu. Henrique
fugiu de casa, voltou, sumia por um tempo, aparecia depois.
Um a um seus
conhecidos foram morrendo. A guerra pelo controle de pontos de venda se
acirrou. Era matar ou morrer. Henrique matou. Nem sabe quantos. Um dia, mais de
20 rivais invadiram sua casa. Escondido no alto de um pé de jaca, conseguiu
escapar.
A vida era cheia de
excessos. Henrique virou alcoólatra. Há cinco anos, o crack deixou de ser só
produto de venda e se transformou em vício. O império ruiu. O traficante perdeu
tudo e foi morar na rua. Deixou a esposa a quem, sob efeito do álcool e do
crack, agrediu, a exemplo de seu pai. A mulher acreditou no marido e insistiu.
Tinha casa, mas dormiu na rua com ele para não deixá-lo desamparado.
À beira da morte,
vislumbrou a chance de se reerguer. Decidiu, então, procurar um abrigo do
Programa Atitude para largar os vícios. Está em uma casa de acolhimento há
quatro meses.
Por coincidência,
reencontrou no espaço o irmão que não via há mais de dez anos. Ele estava no
fim do tratamento e Henrique herdou sua vaga. Quer, agora, seguir o exemplo e
dar a volta por cima. Prometeu à esposa que sairá de lá limpo, para reatar a
união de 15 anos. Diz que pode trabalhar com reciclagem, construção, eletricidade,
encanamento. Do narcotráfico, garante, pediu demissão.
ENTRE O CÉU E O
INFERNO
“Não tive
oportunidade de trabalho e fui vender crack.” A frase de Marcelo resume sua
história e todas as outras. O menino começou aos 14 anos, por conta própria,
porque a droga sempre esteve dentro de casa. Seu padrasto mantinha o vício na
frente da criança e dos outros três irmãos. Marcelo via que o negócio era
lucrativo. Quis faturar também.
Pouco tempo depois,
o dono da boca de fumo soube que o garoto estava traficando em sua área e o
proibiu de atuar como autônomo. Marcelo foi trabalhar para ele. Tinha o dever
de preparar as pedras. Após ser preso, o traficante precisou de alguém para
comandar o negócio na comunidade. O adolescente foi escolhido. Recebia as
ordens que partiam de dentro da cadeia. Trocava mensagens de celular com o
amigo e detento.
O crack virou mina
de ouro. Marcelo passou a viver um mundo de ilusão. Tinha moto, dois
revólveres, relógio de R$ 5 mil, cordões de prata, roupas de marca. Vivia em
festas, em meio a mulheres, bebedeiras e drogas. O mercado rendia R$ 30 mil por
semana, menos de 10% ficavam com Marcelo, mas já era bem mais do que ele
ganharia com um trabalho honesto.
Mesmo assim, achou
que se daria melhor se trabalhasse só. Enganou o chefe, afirmando que largaria
a vida do tráfico, mudou de bairro e voltou a vender crack. Cometeu somente um
erro: adquiria a droga do mesmo fornecedor. O ex-patrão terminou sabendo. A
situação piorou quando, na segunda remessa recebida, Marcelo foi preso, em 15
de maio de 2008. O chefe da boca de fumo soube da prisão e, mesmo chateado com
o jovem, telefonou para o chaveiro do Centro de Triagem de Abreu e Lima (Cotel)
e pediu para protegê-lo e lhe dar apoio. Três meses depois, Marcelo foi
transferido para o presídio onde o comparsa estava. Ficou no mesmo pavilhão.
Livre, ele não
procurou outro emprego. Voltou a trabalhar no crack. Tinha perdido tudo na
cadeia e foi promovido, em pouco tempo, ao cargo de gerente de cocaína, bem
mais rentável. O quilo custava R$ 16 mil. Ganhou dinheiro de novo, levou dois
tiros, quase morreu e, após ficar visado pela polícia, acabou demitido.
Trabalhou sozinho de novo. Mas já não era só mais dono do crack, era refém. Foi
trapaceado, perdeu tudo e acabou indo morar na rua. O vício se agravou. “A
pedra me deu tudo e me tirou tudo.” Aconselhado por um colega que conheceu na
rua, procurou um abrigo para dependentes. Está lá há menos de um mês.
POR AMOR
Dos seis irmãos, só
Fabiana foi empregada do crack. Os outros levam até hoje uma vida normal. Natural
de Fortaleza, no Ceará, ela vivia como qualquer outra adolescente, quando
começou a namorar um traficante. No início, olhava de longe, mas não se metia.
Estudou até a 7ª série, até engravidar. Não voltaria mais ao colégio.
Por falta de
oportunidades, aceitou a proposta de auxiliar o namorado no tráfico. Queria ser
administradora de empresas. Acabou fazendo pequenos transportes de crack e
pasta-base pela região onda morava. O relacionamento teve fim, mas Fabiana
continuou no narcotráfico. “Acabei conhecendo pessoas piores que ele”,
confidencia.
O fim da linha se
deu quando, seis meses atrás, ela aceitou a oferta de carregar quatro quilos de
pasta-base – com a qual se faz o crack – de Fortaleza para o Recife. O ônibus
em que Fabiana viajava foi parado numa blitz da Polícia Rodoviária Federal
(PRF) e a jovem de 22 anos acabou descoberta.
Enquanto aguarda
julgamento na Colônia Penal Feminina do Recife, faz planos para o futuro. Por
não ser dependente química, garante que sairá do universo do tráfico de drogas
sem maiores problemas. “Minha vida não era fácil, mas era muito melhor viver
aquela vida difícil do que essa que eu vivo aqui. O tráfico não compensa”. O
mais difícil são os 800 quilômetros que separam a cadeia recifense de sua filha
de 6 anos, que mora na capital cearense e não sabe que a mãe está presa.
BONECA DO CRACK
Cláudia trocou as
bonecas pelo crack. Criada em um bairro pobre de um município do Grande Recife,
tinha 14 anos quando, influenciada por amigos, começou a traficar. Um ano
antes, já havia mergulhado na bebida e na maconha. Largou a escola na 5ª série
do ensino fundamental e foi trabalhar para o cunhado. Ajudava a embalar a droga
e fazia as vezes de mula. Durou pouco. O homem foi assassinado.
A adolescente se
casou. Não deu tempo de arrumar outro emprego. O marido era traficante e ela
passou a administrar o negócio. A mãe tentou, em vão, fazê-la desistir. “Se pau
resolvesse, eu não estaria aqui. Minha mãe me fazia ajoelhar no feijão e no
milho, mas castigo nenhum deu jeito. A droga dá muito dinheiro, acaba cegando”,
diz.
O casal chegava a
ganhar R$ 1 mil por dia. Hoje, ela não tem mais nada. Separou-se do homem, mas
não do crack. Foi presa grávida e terminou condenada a seis anos por tráfico. A
pena foi reduzida em um ano pela confissão. Responde a outra acusação, por
homicídio, assunto que ela prefere não falar.
Já cumpriu um ano e
sete meses de pena. Deu à luz no do presídio, lamenta o fato de a filha crescer
longe de seus olhos e não vê a hora de sair da Colônia Penal Feminina do Recife
para recomeçar. Espera, pela primeira vez na vida, trabalhar em algo diferente
do narcotráfico. O atual marido, que a encorajou a mudar de vida, é fiscal da
prefeitura. Cláudia, 21 anos, quer seguir o mesmo caminho.
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