terça-feira, 9 de abril de 2013

 
O CRACK COMO 1º EMPREGO.
Wagner Sarmento.
Um sonhou ser mecânico, o outro quis ser motorista ou jogador de futebol, uma jovem se imaginou administradora de empresas, outra adolescente pensou em se tornar servidora pública. A vida traiu os planos, desviou rotas e os colocou no mesmo liquidificador. As quatro histórias tiveram começos distintos, mas se cruzaram no meio do caminho. Eles não se conhecem e mesmo assim estão unidos por uma coincidência: o primeiro emprego que conseguiram foi no narcotráfico. Funcionários do crack sociedade anônima, assinaram carteira com o dinheiro fácil. E com o desengano.
A Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) – desenvolvida pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) – aponta que 27% dos jovens de 16 a 24 anos moradores da Região Metropolitana do Recife estão desempregados. O Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que 811.446 pernambucanos entre 15 e 24 anos fazem parte da população economicamente ativa.
Há, contudo, um exército difícil de contar. Crianças e adolescentes que pesquisa nenhuma alcança nem tipifica. Gente que até sonha com um futuro melhor, mas que é encurralada pelo presente para a violência. O Jornal do Commercio entrou nos presídios e casas de apoio para conhecer as histórias de quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, que abandonaram os estudos, os projetos de vida e a dignidade, recrutadas por um ramo que promete lucros exorbitantes e, no entanto, também estigmatiza, consome e tira a paz.
Henrique, Marcelo, Cláudia e Fabiana são seus nomes fictícios. A teia do mundo do crime os impede de mostrar o rosto. Relatam trajetórias ocultas e recorrentes, que são suas e de tantos outros que, ainda meninos, largam os estudos e são arregimentados pelo tráfico de drogas. Henrique foi chefe de boca de fumo com apenas 12 anos. Marcelo virou gerente de cocaína da favela no auge de sua atuação. Cláudia começou traficando e acabou acusada de homicídio. Fabiana entrou no negócio influenciada pelo namorado.
Todos viviam em comunidades carentes, tinham famílias desajustadas e enxergaram no narcotráfico uma chance de mudar de vida. Todos comercializavam de tudo, mas logo focaram as atenções e os investimentos no crack, droga que, segundo eles, passou a vender feito água nos últimos dez anos, pelo baixo preço e pela alta dependência que causa. Todos estiveram rodeados de armas, de sangue, de medo.
Henrique foi o caso mais precoce que a reportagem encontrou. Tinha só 8 anos quando foi sugado pelo crime. Mal sabia sobre a vida, mas a droga sempre foi inquilina. Estava em casa, na vizinhança, debaixo do nariz, tão arraigada a seu cotidiano que ele passou a fazer parte da engrenagem sem nem perceber. Nos outros casos, o ingresso no tráfico se deu da mesma maneira.
Nenhum chegou a concluir os estudos. O ensino fundamental incompleto é prova de que o crack roubou a infância e a oportunidade de vencer pelos meios lícitos. Cada um cumpriu uma função distinta no organograma do crack. Henrique começou como avião (quem leva a droga), fazendo bicos, e se tornou patrão. Marcelo era braço direito do dono da boca, que gerenciava o negócio de dentro de um presídio. Cláudia trabalhou como embaladora e administradora. Fabiana atuou como mula, fazendo o transporte interestadual da pasta-base da qual deriva a pedra da morte. O narcotráfico, assim como qualquer outro ramo, tem uma hierarquia definida com cargos, responsabilidades e salários diversos.
Henrique, Marcelo, Cláudia e Fabiana comungam do mesmo arrependimento. O mercado do crack rendeu um bom dinheiro, é verdade. Deu luxo, roupas, joias, noitadas. O preço, entretanto, foi alto demais. Acabaram presos. Eles, viciados na pedra e ameaçados de morte. Elas, longe dos filhos. A droga deu tudo e tirou tudo.
SOLDADO AOS 8, LÍDER AOS 12
Henrique tinha só 8 anos de idade. Botava a mochila nas costas e saía de bicicleta a desbravar as ladeiras do morro onde morava, na periferia do Recife. No meio dos livros, crack e maconha. O menino sem noção alguma do que era a vida, sem tamanho para trabalhar, no auge da infância, era explorado como soldado do narcotráfico. Mal teve tempo de sonhar em se tornar jogador de futebol.
O desajuste familiar dava guarida ao erro. O pai espancava a mãe e levava a criança para as gafieiras que frequentava. A bebida e a droga faziam parte da rotina. Cansado de “comer cuscuz e chá o dia todo”, entrou para o crime. A pouca idade fazia dele um recruta insuspeito. O garoto logo ganhou a confiança do chefe da boca de fumo. Aos 12 anos, foi promovido a líder do tráfico. O lucro pipocou. Às vezes, chegava a R$ 2 mil por dia. A inveja regou inimigos. Ele ignorava os desafetos, estava protegido pelo mandachuva. A mãe perguntava de onde o filho tirava tanto dinheiro, o menino desconversava, até que ela descobriu. Henrique fugiu de casa, voltou, sumia por um tempo, aparecia depois.
Um a um seus conhecidos foram morrendo. A guerra pelo controle de pontos de venda se acirrou. Era matar ou morrer. Henrique matou. Nem sabe quantos. Um dia, mais de 20 rivais invadiram sua casa. Escondido no alto de um pé de jaca, conseguiu escapar.
A vida era cheia de excessos. Henrique virou alcoólatra. Há cinco anos, o crack deixou de ser só produto de venda e se transformou em vício. O império ruiu. O traficante perdeu tudo e foi morar na rua. Deixou a esposa a quem, sob efeito do álcool e do crack, agrediu, a exemplo de seu pai. A mulher acreditou no marido e insistiu. Tinha casa, mas dormiu na rua com ele para não deixá-lo desamparado.
À beira da morte, vislumbrou a chance de se reerguer. Decidiu, então, procurar um abrigo do Programa Atitude para largar os vícios. Está em uma casa de acolhimento há quatro meses.
Por coincidência, reencontrou no espaço o irmão que não via há mais de dez anos. Ele estava no fim do tratamento e Henrique herdou sua vaga. Quer, agora, seguir o exemplo e dar a volta por cima. Prometeu à esposa que sairá de lá limpo, para reatar a união de 15 anos. Diz que pode trabalhar com reciclagem, construção, eletricidade, encanamento. Do narcotráfico, garante, pediu demissão.
ENTRE O CÉU E O INFERNO
“Não tive oportunidade de trabalho e fui vender crack.” A frase de Marcelo resume sua história e todas as outras. O menino começou aos 14 anos, por conta própria, porque a droga sempre esteve dentro de casa. Seu padrasto mantinha o vício na frente da criança e dos outros três irmãos. Marcelo via que o negócio era lucrativo. Quis faturar também.
Pouco tempo depois, o dono da boca de fumo soube que o garoto estava traficando em sua área e o proibiu de atuar como autônomo. Marcelo foi trabalhar para ele. Tinha o dever de preparar as pedras. Após ser preso, o traficante precisou de alguém para comandar o negócio na comunidade. O adolescente foi escolhido. Recebia as ordens que partiam de dentro da cadeia. Trocava mensagens de celular com o amigo e detento.
O crack virou mina de ouro. Marcelo passou a viver um mundo de ilusão. Tinha moto, dois revólveres, relógio de R$ 5 mil, cordões de prata, roupas de marca. Vivia em festas, em meio a mulheres, bebedeiras e drogas. O mercado rendia R$ 30 mil por semana, menos de 10% ficavam com Marcelo, mas já era bem mais do que ele ganharia com um trabalho honesto.
Mesmo assim, achou que se daria melhor se trabalhasse só. Enganou o chefe, afirmando que largaria a vida do tráfico, mudou de bairro e voltou a vender crack. Cometeu somente um erro: adquiria a droga do mesmo fornecedor. O ex-patrão terminou sabendo. A situação piorou quando, na segunda remessa recebida, Marcelo foi preso, em 15 de maio de 2008. O chefe da boca de fumo soube da prisão e, mesmo chateado com o jovem, telefonou para o chaveiro do Centro de Triagem de Abreu e Lima (Cotel) e pediu para protegê-lo e lhe dar apoio. Três meses depois, Marcelo foi transferido para o presídio onde o comparsa estava. Ficou no mesmo pavilhão.
Livre, ele não procurou outro emprego. Voltou a trabalhar no crack. Tinha perdido tudo na cadeia e foi promovido, em pouco tempo, ao cargo de gerente de cocaína, bem mais rentável. O quilo custava R$ 16 mil. Ganhou dinheiro de novo, levou dois tiros, quase morreu e, após ficar visado pela polícia, acabou demitido. Trabalhou sozinho de novo. Mas já não era só mais dono do crack, era refém. Foi trapaceado, perdeu tudo e acabou indo morar na rua. O vício se agravou. “A pedra me deu tudo e me tirou tudo.” Aconselhado por um colega que conheceu na rua, procurou um abrigo para dependentes. Está lá há menos de um mês.
POR AMOR
Dos seis irmãos, só Fabiana foi empregada do crack. Os outros levam até hoje uma vida normal. Natural de Fortaleza, no Ceará, ela vivia como qualquer outra adolescente, quando começou a namorar um traficante. No início, olhava de longe, mas não se metia. Estudou até a 7ª série, até engravidar. Não voltaria mais ao colégio.
Por falta de oportunidades, aceitou a proposta de auxiliar o namorado no tráfico. Queria ser administradora de empresas. Acabou fazendo pequenos transportes de crack e pasta-base pela região onda morava. O relacionamento teve fim, mas Fabiana continuou no narcotráfico. “Acabei conhecendo pessoas piores que ele”, confidencia.
O fim da linha se deu quando, seis meses atrás, ela aceitou a oferta de carregar quatro quilos de pasta-base – com a qual se faz o crack – de Fortaleza para o Recife. O ônibus em que Fabiana viajava foi parado numa blitz da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a jovem de 22 anos acabou descoberta.
Enquanto aguarda julgamento na Colônia Penal Feminina do Recife, faz planos para o futuro. Por não ser dependente química, garante que sairá do universo do tráfico de drogas sem maiores problemas. “Minha vida não era fácil, mas era muito melhor viver aquela vida difícil do que essa que eu vivo aqui. O tráfico não compensa”. O mais difícil são os 800 quilômetros que separam a cadeia recifense de sua filha de 6 anos, que mora na capital cearense e não sabe que a mãe está presa.
BONECA DO CRACK
Cláudia trocou as bonecas pelo crack. Criada em um bairro pobre de um município do Grande Recife, tinha 14 anos quando, influenciada por amigos, começou a traficar. Um ano antes, já havia mergulhado na bebida e na maconha. Largou a escola na 5ª série do ensino fundamental e foi trabalhar para o cunhado. Ajudava a embalar a droga e fazia as vezes de mula. Durou pouco. O homem foi assassinado.
A adolescente se casou. Não deu tempo de arrumar outro emprego. O marido era traficante e ela passou a administrar o negócio. A mãe tentou, em vão, fazê-la desistir. “Se pau resolvesse, eu não estaria aqui. Minha mãe me fazia ajoelhar no feijão e no milho, mas castigo nenhum deu jeito. A droga dá muito dinheiro, acaba cegando”, diz.
O casal chegava a ganhar R$ 1 mil por dia. Hoje, ela não tem mais nada. Separou-se do homem, mas não do crack. Foi presa grávida e terminou condenada a seis anos por tráfico. A pena foi reduzida em um ano pela confissão. Responde a outra acusação, por homicídio, assunto que ela prefere não falar.
Já cumpriu um ano e sete meses de pena. Deu à luz no do presídio, lamenta o fato de a filha crescer longe de seus olhos e não vê a hora de sair da Colônia Penal Feminina do Recife para recomeçar. Espera, pela primeira vez na vida, trabalhar em algo diferente do narcotráfico. O atual marido, que a encorajou a mudar de vida, é fiscal da prefeitura. Cláudia, 21 anos, quer seguir o mesmo caminho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário