Repressão a usuário de drogas é questão constitucional.
Antes de tudo, deve-se esclarecer: descriminalizar o uso de
drogas não significa legalizá-lo. O que se discute nas barras do STF é a
constitucionalidade da repressão penal do consumidor de drogas, sem que se
entre no mérito da autorização do consumo ou da legalização de sua
comercialização. Os acirrados colóquios sobre os prejuízos e benefícios das
drogas não fazem parte desta discussão. Aqui o debate é pontual: é legítimo o
uso do Direito Penal para prevenir o consumo de tóxicos?
E a resposta nos parece negativa.
O argumento: a Constituição brasileira tem como princípio basilar a dignidade humana e a pluralidade (CF, artigo 1º, III e V), que afastam a criminalização de qualquer comportamento que não coloque em risco bens jurídicos de terceiros, mesmo que afete a saúde, integridade ou a própria vida do agente. Em outras palavras, a autocolocação em perigo e a autolesão não são tema para o Direito Penal. Isso não significa que a sociedade saúde ou concorde com tais comportamentos, mas apenas que o Direito Penal não é instrumento para impedir tais atos — a não ser que terceiros os incentivem ou deles participem.
Assim, se o uso de drogas afeta apenas a saúde do indivíduo, mas não coloca em risco direito de terceiros, está protegido pelo espaço de privacidade do indivíduo, imune à norma penal (CF, artigo 5º, X), embora outras intervenções públicas sejam possíveis (apreensão da droga, orientação ou oferecimento de tratamento facultativo, por exemplo). Como ensina Roxin:
“Impedir que as pessoas se despojem da própria dignidade não é problema do Direito Penal. Mesmo que se quisesse, por ex. considerar o suicídio um desprezo à própria dignidade — o que eu não julgo correto — este argumento não poderia ser trazido para fundamentar a punibilidade do suicídio tentado”[1].
Por isso, o artigo 28 da Lei de Drogas, que criminaliza o porte de drogas para consumo próprio, conflita com os artigos 1º, III e V e 5º, X da Constituição Federal.
Contrapondo-se a tais argumentos, há quem discorde desta inocuidade do consumidor de drogas, indicando ele ser portador de uma periculosidade específica: ao consumir tais produtos, ele incentiva o tráfico, ademais de, na busca de recursos para satisfazer seu vicio, estar propenso a cometer os mais diversos crimes patrimoniais.
No entanto, estes argumentos não parecem sustentáveis. A uma porque fundar uma punição na possibilidade do agente cometer crimes posteriores significaria legitimar a norma penal na futurologia, o que contraria qualquer ideia de culpabilidade como a reprovação individual pelo fato praticado, e de ledividade, uma vez que seria permitida a sanção por um ato sequer vislumbrado concretamente. Isso sem contar na quebra da isonomia, pois justificar a punição do consumidor de drogas nos possíveis crimes futuros praticados por ele exigiria a mesma política em relação ao álcool, cujo consumo resulta em milhares de mortes e lesões corporais nos mais diversos setores.
O argumento do incentivo ao tráfico também não prospera. Justificar a repressão no ato de outro, de terceiro, fora do controle do usuário, também não se coaduna com o princípio da culpabilidade. Seria perigoso justificar a punição criminal de uma pessoa no comportamento de outro que ela muitas vezes sequer sabe quem é. Abre-se um precedente para a responsabilidade penal pelo outro, objetiva, sem culpa ou dolo. A não ser que — em uma forçada interpretação — se caracterize o usuário como o incitador do crime de tráfico, equiparando-se aquele que em verdade é vítima (o consumidor) ao coautor do delito. Não parece razoável.
Por outro lado, experiências internacionais de descriminalização, como a de Portugal, revelaram uma redução do consumo de drogas após a medida, a demonstrar que a repressão penal não é necessariamente um antídoto ao tráfico[2]. Ao contrário, o afastamento do direito penal pode ser mais eficaz para os mesmos fins.
E há uma explicação para isso. Estudos demonstram que tratar o consumidor de drogas como criminoso significa afastá-lo de qualquer política de tratamento — para os casos em que este tratamento é indicado. Significa estigmatizá-lo como o responsável pelo crime do qual às vezes é vítima, impedindo uma política mais efetiva de aproximação e de redução de danos. Significa, enfim, lutar contra ele em vez de buscar uma solução para o problema.
A descriminalização permite o fortalecimento de políticas de tratamento mais adequadas. O diálogo com o usuário deixa de ser um problema policial e passa a ser um problema médico (nos casos em que realmente o tratamento é necessário).
Há quem qualifique a proposta de inocente e romântica. Mas este foi o caminho seguido pela Colômbia em 1994, por Portugal em 2000, pela Argentina em 2009, dentre muitos outros países, como Itália, Alemanha, Noruega. E não há indícios do fracasso da política de descriminalização. É certo que o tráfico de drogas ainda é uma realidade, mas o tratamento humano do usuário tem revelado resultados impressionantes, como a drástica redução de drogas injetáveis, das mortes por overdose e o fortalecimento da prevenção à AIDS entre consumidores de tóxicos. Por outro lado, a “guerra às drogas” pautada na criminalização mostrou-se absolutamente ineficaz[3].
Enfim, o que se busca no STF é o reconhecimento da incompatibilidade do artigo 28 da Lei de Drogas — que pune o usuário com sanções criminais (ainda que distintas da prisão, mas ainda assim criminais) — com o preceito da dignidade humana, do pluralismo e da intimidade (CF, artigo 1º, III, V e artigo 5º, X), que limita o direito penal aos comportamentos que extrapolem o espaço individual de cada cidadão, deixando livre de pena o círculo de autodeterminação. Como destacaram os Ministros da Corte Constitucional da Colômbia:
“Si a la persona se le reconece esa autonomia (esfera de liberdade individual) no puede limitárse sino en la medida en que entra en conflito com la autonomia ajena. El considerar a la persona como autónoma tiene sus consecuencias inevitables e inexorables, y la primera y más importante de todas consiste em que los assuntos que sólo a la persona atañen, sólo por ella deben ser decididos. Decidir por ella es arrebatarle brutalmente su condición ética, reducirla a la condición de objeto, cosificarla, convertirla em médio para los fines que por fuera de ella se eligen. Cuando el Estado resuelve reconocer la autonomía de la persona, lo que ha decidido, no más ni menos, es constatar el ámbito que le corresponde como sujeto ético: dejarla que decida sobre lo más radicalmente humano, sobre lo bueno y lo malo, sobre el sentido de su existencia”[4].
Isso não significa deixar de encarar a droga como um problema. É legítimo que o Estado lance mão de medidas administrativas, pedagógicas e sociais para prevenir o uso de entorpecentes e para tratar o usuário que necessita de ajuda. O que não parece adequado é o uso do Direito Penal como medida pedagógica contra atos praticados na esfera de intimidade do individuo. Ao menos em um Estado que se proponha Democrático de Direito.
E a resposta nos parece negativa.
O argumento: a Constituição brasileira tem como princípio basilar a dignidade humana e a pluralidade (CF, artigo 1º, III e V), que afastam a criminalização de qualquer comportamento que não coloque em risco bens jurídicos de terceiros, mesmo que afete a saúde, integridade ou a própria vida do agente. Em outras palavras, a autocolocação em perigo e a autolesão não são tema para o Direito Penal. Isso não significa que a sociedade saúde ou concorde com tais comportamentos, mas apenas que o Direito Penal não é instrumento para impedir tais atos — a não ser que terceiros os incentivem ou deles participem.
Assim, se o uso de drogas afeta apenas a saúde do indivíduo, mas não coloca em risco direito de terceiros, está protegido pelo espaço de privacidade do indivíduo, imune à norma penal (CF, artigo 5º, X), embora outras intervenções públicas sejam possíveis (apreensão da droga, orientação ou oferecimento de tratamento facultativo, por exemplo). Como ensina Roxin:
“Impedir que as pessoas se despojem da própria dignidade não é problema do Direito Penal. Mesmo que se quisesse, por ex. considerar o suicídio um desprezo à própria dignidade — o que eu não julgo correto — este argumento não poderia ser trazido para fundamentar a punibilidade do suicídio tentado”[1].
Por isso, o artigo 28 da Lei de Drogas, que criminaliza o porte de drogas para consumo próprio, conflita com os artigos 1º, III e V e 5º, X da Constituição Federal.
Contrapondo-se a tais argumentos, há quem discorde desta inocuidade do consumidor de drogas, indicando ele ser portador de uma periculosidade específica: ao consumir tais produtos, ele incentiva o tráfico, ademais de, na busca de recursos para satisfazer seu vicio, estar propenso a cometer os mais diversos crimes patrimoniais.
No entanto, estes argumentos não parecem sustentáveis. A uma porque fundar uma punição na possibilidade do agente cometer crimes posteriores significaria legitimar a norma penal na futurologia, o que contraria qualquer ideia de culpabilidade como a reprovação individual pelo fato praticado, e de ledividade, uma vez que seria permitida a sanção por um ato sequer vislumbrado concretamente. Isso sem contar na quebra da isonomia, pois justificar a punição do consumidor de drogas nos possíveis crimes futuros praticados por ele exigiria a mesma política em relação ao álcool, cujo consumo resulta em milhares de mortes e lesões corporais nos mais diversos setores.
O argumento do incentivo ao tráfico também não prospera. Justificar a repressão no ato de outro, de terceiro, fora do controle do usuário, também não se coaduna com o princípio da culpabilidade. Seria perigoso justificar a punição criminal de uma pessoa no comportamento de outro que ela muitas vezes sequer sabe quem é. Abre-se um precedente para a responsabilidade penal pelo outro, objetiva, sem culpa ou dolo. A não ser que — em uma forçada interpretação — se caracterize o usuário como o incitador do crime de tráfico, equiparando-se aquele que em verdade é vítima (o consumidor) ao coautor do delito. Não parece razoável.
Por outro lado, experiências internacionais de descriminalização, como a de Portugal, revelaram uma redução do consumo de drogas após a medida, a demonstrar que a repressão penal não é necessariamente um antídoto ao tráfico[2]. Ao contrário, o afastamento do direito penal pode ser mais eficaz para os mesmos fins.
E há uma explicação para isso. Estudos demonstram que tratar o consumidor de drogas como criminoso significa afastá-lo de qualquer política de tratamento — para os casos em que este tratamento é indicado. Significa estigmatizá-lo como o responsável pelo crime do qual às vezes é vítima, impedindo uma política mais efetiva de aproximação e de redução de danos. Significa, enfim, lutar contra ele em vez de buscar uma solução para o problema.
A descriminalização permite o fortalecimento de políticas de tratamento mais adequadas. O diálogo com o usuário deixa de ser um problema policial e passa a ser um problema médico (nos casos em que realmente o tratamento é necessário).
Há quem qualifique a proposta de inocente e romântica. Mas este foi o caminho seguido pela Colômbia em 1994, por Portugal em 2000, pela Argentina em 2009, dentre muitos outros países, como Itália, Alemanha, Noruega. E não há indícios do fracasso da política de descriminalização. É certo que o tráfico de drogas ainda é uma realidade, mas o tratamento humano do usuário tem revelado resultados impressionantes, como a drástica redução de drogas injetáveis, das mortes por overdose e o fortalecimento da prevenção à AIDS entre consumidores de tóxicos. Por outro lado, a “guerra às drogas” pautada na criminalização mostrou-se absolutamente ineficaz[3].
Enfim, o que se busca no STF é o reconhecimento da incompatibilidade do artigo 28 da Lei de Drogas — que pune o usuário com sanções criminais (ainda que distintas da prisão, mas ainda assim criminais) — com o preceito da dignidade humana, do pluralismo e da intimidade (CF, artigo 1º, III, V e artigo 5º, X), que limita o direito penal aos comportamentos que extrapolem o espaço individual de cada cidadão, deixando livre de pena o círculo de autodeterminação. Como destacaram os Ministros da Corte Constitucional da Colômbia:
“Si a la persona se le reconece esa autonomia (esfera de liberdade individual) no puede limitárse sino en la medida en que entra en conflito com la autonomia ajena. El considerar a la persona como autónoma tiene sus consecuencias inevitables e inexorables, y la primera y más importante de todas consiste em que los assuntos que sólo a la persona atañen, sólo por ella deben ser decididos. Decidir por ella es arrebatarle brutalmente su condición ética, reducirla a la condición de objeto, cosificarla, convertirla em médio para los fines que por fuera de ella se eligen. Cuando el Estado resuelve reconocer la autonomía de la persona, lo que ha decidido, no más ni menos, es constatar el ámbito que le corresponde como sujeto ético: dejarla que decida sobre lo más radicalmente humano, sobre lo bueno y lo malo, sobre el sentido de su existencia”[4].
Isso não significa deixar de encarar a droga como um problema. É legítimo que o Estado lance mão de medidas administrativas, pedagógicas e sociais para prevenir o uso de entorpecentes e para tratar o usuário que necessita de ajuda. O que não parece adequado é o uso do Direito Penal como medida pedagógica contra atos praticados na esfera de intimidade do individuo. Ao menos em um Estado que se proponha Democrático de Direito.
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito
Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da
Justiça.
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