O crack que ninguém queria ver.
Ainda
não há nenhum remédio que cure a dependência da cocaína. E cada vez se usa mais
o crack, o substrato da droga, portanto mais fatal que ela. Essa é uma das
tristes conclusões que trago das aulas que assisti no início deste mês na Universidade
de Harvard, nos Estados Unidos. Ano após ano, busco a reciclagem no curso de
Educação Médica Continuada da Universidade, o que me confere autorização da
Associação Médica Americana para continuar atuando como especialista
pós-graduado em dependência química.
Isso
tem explicação em uma doença social. O crack deve ser visto como um produto
qualquer dentro do sistema capitalista. Como uma solução mágica, ele vem
revestido da idéia de felicidade imediata, satisfação instantânea, a preço
muito baixo, já que cada pedra pode sair a R$ 1,00. Além disso, há uma forte
propaganda boca a boca, enaltecendo o uso de drogas como sendo ‘uma boa’. Penso
que a propaganda favorável aumenta às custas dos que se calam. O problema é que
a grande maioria não diz aquilo que pensa. Essa pouca manifestação em geral é
por temor de represália de violência, já que a venda do produto tóxico é
realizada em ambientes sujeitos à violência, mas também pode ser por medo
social de ser rejeitado por não estar de acordo com a conduta geral. Chegamos
ao ponto absurdo em que um veneno extraordinariamente nocivo como o crack é
usado nas ruas, por crianças, e fingimos que não estamos vendo.
E
o pior: quando o governo toma a atitude de tratar destes menores, começa a
receber críticas. Defendo a internação compulsória de menores proposta pelo
Secretário Municipal de Assistência Social do Rio, Rodrigo Bethlem, que conta
com minha assistência sempre que precisar. Conter involuntariamente uma criança
que esteja se drogando é atitude humana, amparada na lei e tem o apoio do
juizado de menores. É preciso considerar que nem sempre a pessoa que quebra um
braço quer ser atendida pela ambulância: muitas vezes porque não conseguem
avaliar adequadamente suas necessidades. A questão já foi até debatida por nós
na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, em Brasília, e o projeto do
combate ao crack no Rio - mesmo imperfeito por ser uma espécie de cobaia está
sendo imitado em outros estados.
Vamos
lembrar que crack é uma droga que entra muito rapidamente na circulação
sanguínea, enfraquecendo o organismo e predispondo-o a doenças infecciosas e à
morte. Causa doenças pulmonares graves, porque o usuário respira veneno, a
escória da cocaína. Quem se droga, se descuida da alimentação, ingerindo menos
proteína e fabricando menos anticorpos. Também não se importa com a higiene,
permitindo a entrada de micróbios agressores no organismo. O crack cria
dependência em menos de dez vezes de uso. Sua ação cerebral grave altera a
condução do pensamento, levando a transtornos mentais e comportamentais sérios,
com aumento significativo da agressividade.
Minha
experiência clínica me permite afirmar que até cinco anos atrás eram pouco
freqüentes as internações pro crack no país. Mas agora, é raríssimo encontrar
alguém internado para tratar dependência química que não tenha usado crack. Com
isto, o tempo das internações também mudou. Se antes, precisávamos de 60 dias
de internação para casos graves de dependência de cocaína, hoje são necessários
seis meses para estancar a compulsividade que toma conta do usuário de crack,
com equipe de médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais,
fisioterapeutas, professores de Educação Física, nutricionistas... E depois da
alta, o paciente depende de acompanhamento 24h e freqüência aos grupos de
Narcóticos Anônimos, o recurso gratuito de manutenção da abstinência, para não
facilitar a temida recaída.
Há
muito tempo, ofereço um espaço gratuito para tratamento ambulatorial de
dependentes químicos na Câmara Comunitária da Barra da Tijuca, onde também
formo conselheiros. Este ano, o curso gratuito conta com 160 alunos. Serão eles
que, em 2013, como todos os anos, vão se organizar para colocar na rua a banda
Alegria Sem Ressaca, que faz prevenção à dependência química, desfilando pela orla
de Copacabana no domingo anterior ao Carnaval. Será o décimo desfile da banda,
que tem a atriz Luiza Tomé, familiar de dependente químico, como madrinha.
*Jorge
Jaber é médico, especialista em dependência química pela Um de Harvard, diretor
científico da Associação Brasileira de Alcoolismo e Outras Drogas (ABRAD), e
assessor da presidência Associação Brasileiro de Psiquiatria, para assuntos
ligados à dependência química (ABP).
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