Sexo, crack e
gravidez
Um olhar sobre o grupo mais
vulnerável da Cracolândia.
O
“faxinão” da Cracolândia, a tentativa de dispersar os viciados do centro de São
Paulo sem oferecer a eles nenhuma forma adequada de tratamento, obriga a
sociedade a discutir o que deu errado ali nos últimos 20 anos. Proponho um
olhar construtivo. Uma reflexão sobre quem mais sofre onde o Estado fracassa.
Entre
os diversos grupos que usam crack, nenhum parece ser tão vulnerável quanto o
das jovens grávidas. Em junho do ano passado, ÉPOCA publicou uma reportagem
sobre o aumento dos casos de dependentes da droga que tinham seus bebês na
principal maternidade pública da Zona Leste da capital.
O
uso da droga durante a gravidez pode provocar diversos problemas: descolamento
da placenta, falta de oxigenação, retardo do crescimento, baixo peso no
nascimento e morte da criança. Naquela reportagem, ouvi dos profissionais da
Maternidade Leonor Mendes de Barros as dificuldades cotidianas que enfrentavam
na tentativa de aliviar o sofrimento desses bebês. Muitos são prematuros e
acabam abandonados no hospital pelas mães.
A
situação piora a cada dia. Em 2007, apenas uma criança nascida na maternidade
havia sido encaminhada para adoção. Em 2008, foram quinze casos. Em 2010, mais
43. Apenas nos três primeiros meses de 2011, outros 14 recém-nascidos foram
enviados para abrigos e ficaram à espera de adoção.
Esses
bebês costumam nascer hiperexcitados, irritados, chorosos. É sinal de que a
droga chegou ao cérebro e pode ter provocado alterações de desenvolvimento. Mas
o resultado desse contato precoce só pode ser observado anos depois, quando a
criança começar sua vida escolar.
Poucos
pesquisadores no mundo se dedicaram a acompanhar essas crianças a longo prazo.
“As evidências disponíveis sobre prejuízos no desenvolvimento neuropsicomotor
ainda são inconsistentes e controversas”, diz Marcelo Ribeiro, diretor de
ensino da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (Uniad), da Unifesp. “Alguns
estudos mostram que os bebês expostos ao crack durante a gestação crescem mais
lentamente. Outros trabalhos não detectaram nenhuma diferença em relação aos
filhos de mulheres que não usam qualquer droga”, afirma.
Marcelo
Ribeiro e Ronaldo Laranjeira são os organizadores do livro O tratamento do usuário
de crack, (664 páginas e R$ 88), um lançamento da Editora Artmed. A obra é
completíssima. São 47 capítulos escritos por especialistas que abordam os mais
diversos aspectos que envolvem a discussão em torno do crack (história,
epidemiologia, diagnóstico, tratamento, neurobiologia etc). Quem pretende
discutir o assunto sem dizer bobagem demais precisa ler esse livro.
Graças
a ele, pude entender um pouco melhor a situação em que essas jovens se
encontram. Muitas trocam sexo por pedras de crack. A falta de planejamento e de
organização, típica da adolescência, é potencializada pelo vício. Muitas
engravidam e não sabem quem é o pai da criança. Não têm o menor suporte
emocional e social nem estabelecem vínculo afetivo com o bebê. É uma tragédia
coletiva que São Paulo e o Brasil precisam enfrentar com as armas certas.
Num
capítulo específico sobre troca de sexo por crack, o grupo da pesquisadora
Solange A. Nappo relata que, quase sempre, o traficante é o primeiro “cliente”
das moças. É uma condição imposta a elas para a aquisição da droga.
Assim
como ocorreu nos Estados Unidos nos anos 80, as jovens que se prostituem para
conseguir a droga se expõem a riscos que as profissionais do sexo aprenderam a
evitar.
Prostitutas
insistem no uso de camisinha. As meninas do crack, por sua vez, não têm poder
de negociação para exigir o uso de preservativo. Nem capacidade de julgamento
para pensar nisso quando estão sob efeito da droga. Fazem sexo na rua e estão
expostas a todas as formas de violência e de humilhações.
“Mulheres
que se submetem à prática de sexo por droga realizam uma prostituição
‘solitária’, isoladas de qualquer grupo que possa protegê-las. Têm maior número
de parceiros e relatam inconsistência no uso de preservativo”, descreve
Solange.
Muitas
acreditam que o sexo oral seja uma alternativa menos arriscada do ponto de
vista da transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Não é bem assim. O
cachimbo para uso da droga pode causar ferimentos nos lábios, na garganta e na
mucosa bucal. Isso aumenta a vulnerabilidade a infecções.
Para
muitas garotas, o sexo é a única forma de conseguir a droga. O artigo traz o
relato de uma delas:
“É
só se prostituindo. É o jeito que mulher consegue crack. A gente sai na rua prá
isso. Acaba de fumar, já pensa no programa prá conseguir mais grana. Faz
programa e pensa em fumar...e é assim a nossa vida.
Sob
o efeito da droga, de fissura ou paranoia, não há a menor possibilidade de
coerência em relação ao uso da camisinha. Esquecem dela ou aceitam passivamente
a recusa do parceiro em usá-la. Há urgência em terminar o ato sexual para
comprar a “pedra” e reiniciar o ciclo.
Em
geral, mulheres que usam crack sofrem um significativo isolamento social quando
comparadas às que usam outras drogas ilegais. Isso cria barreiras para lutarem
por si mesmas e reforça a subserviência diante das agressões.
A
primeira reação de quem ouve essas histórias é reagir com preconceito e
intolerância. Ou até mesmo com raiva. Nada disso contribui para a busca de
soluções. Discriminar essas mulheres não aumenta a probabilidade de que elas
consigam acolhimento, tratamento e a chance de recomeçar a vida.
Nos
últimos dias, muita gente tem perguntado se a Cracolândia tem jeito. O
psiquiatra Marcelo Ribeiro acredita que sim. Segundo ele, a velocidade e as
prioridades nesse processo é que estão equivocadas e fora de lugar.
“Seria
mais tranqüilo se todos os usuários topassem sair de lá direto para uma
clínica, de onde sairiam abstinentes e prontos para a vida. Mas isso é o cúmulo
da utopia”, diz ele.
Mais
realista seria considerar a Cracolândia como uma tremenda dívida social, cuja
solução não passa por soluções mágicas e espalhafatosas.
“As
estratégias sociais, de saúde e de manutenção da ordem devem caminhar juntas,
mas o usuário que lá habita deve ser o centro das preocupações e aquele que
determina a velocidade das transformações”, afirma Ribeiro.
O
“faxinão” é uma tentativa desastrada de varrer o problema para debaixo do
tapete. Ele continuará explícito como toda ferida mal curada.
Cristiane
Segatto - Revista Época 13/01/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário