Desarticulação
pública atrasa combate ao crack
As
políticas públicas voltadas para o tratamento de viciados em drogas avançaram
no Brasil com a extinção dos hospitais psiquiátricos e a difusão, a partir de
2003, dos Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas (Caps-AD). A investida
dos governos municipal e estadual de São Paulo no combate ao crack no centro
paulistano, contudo, expôs contradições e erros do modelo adotado na grande
maioria das cidades do país, na opinião de especialistas ouvidos pelo Valor. O
maior problema do Brasil no combate ao crack, concordam muitos deles, é a
desarticulação entre as políticas de segurança, saúde e assistência social. E
essa desarticulação, dizem, não é exclusividade de São Paulo.
Em
2011, o Ministério da Saúde estima que foram feitos cerca de 3 milhões de
atendimentos nos Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas, localizados
em todas as capitais e na maioria das cidades médias e grandes. Para os
especialistas, as cenas cotidianas de consumo de crack nas ruas do centro de
São Paulo e, mais recentemente, de policiais militares reprimindo usuários na
Cracolândia, sem a retaguarda de profissionais da saúde e do serviço social do
poder público, escancaram a ineficiência do Estado no combate ao consumo da
pedra de pasta de cocaína refinada com bicarbonato de sódio que afeta a vida de
mais de 200 mil brasileiros.
No
caso paulistano, o psiquiatra Marcelo Ribeiro, diretor de ensino da Unidade de
Pesquisas em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp-Uniad) e autor do recém-lançado livro "O Tratamento do Usuário do
Crack" (editora Artmed), avalia que a premissa da ação da polícia - de
reprimir ostensivamente o consumo para provocar a abstinência e a consequente
procura por cuidados - não tem embasamento científico e contribuiu para
"bagunçar o trabalho de anos" de ONGs e de agentes das secretarias
municipais de Saúde e Assistência Social na Cracolândia.
"Claro
que é preciso coibir o consumo livre na rua, mas isso não pode ser feito só sob
a ótica da segurança. O usuário não foi considerado na ação. Autoridades não
conversaram, a polícia não ouviu quem estava lá fazendo um trabalho. O
resultado da desarticulação é que acaba com um problema e surge outro, ninguém
tem noção do segundo e terceiro passos", analisa Ribeiro.
"Há
muita gente trabalhando de forma isolada, de ONGs a universidades, em
secretarias municipais diferentes, e fica um samba do criolo doido, porque a
articulação é muito precária", diz Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e
coordenador do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad) da
Unifesp.
A
situação não é exclusividade de São Paulo. Os dois especialistas da Unifesp não
conhecem, no país, exemplos de diálogo afinado entre autoridades da segurança,
saúde e assistência social para a formulação de um planejamento eficiente para
enfrentar o crack. Ribeiro sugere que a "diversidade de modelos"
adotada em Rivertown, bairro no sul de Londres que pode ser comparado à
Cracolândia, é uma ferramenta importante para lidar com o problema. "[São
ações] de baixa e alta exigência, com oferta de serviços de apoio básico até o
tratamento para a abstinência por equipes multidisciplinares."
O
Ministério da Saúde informa que o novo plano federal de combate à droga,
"Crack, é possível vencer", é baseado em investimentos de R$ 2
bilhões em equipamentos e no desenvolvimento de ações coordenadas. A iniciativa
prevê a abertura de 13.614 novos leitos para usuários de álcool e drogas até
2014. Serão 1.400 nos Caps, 3.600 em enfermarias especializadas e 8.600 em
unidades de acolhimento transitório. Em três anos, serão criados 41 novos Caps,
passando para 175 unidades. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas
(Senad) do Ministério da Justiça, que responde pelo programa, não se
manifestou.
O
problema da ausência de articulação pública na formulação de políticas de
abordagem a viciados em crack e outras drogas é ampliado pela falta de serviços
de atendimento aos dependentes. "O Brasil vem melhorando na abordagem de
combate ao vício. Há 15 anos, havia três ou quatro ambulatórios dentro de
universidades, hoje em dia os Caps cumprem função importante, mas falta a
estrutura intermediária que se vê nos países desenvolvidos", avalia
Ribeiro. Ele se refere a serviços de moradia assistida, enfermarias, espaços
para ação de grupos de autoajuda.
O
Proad começou há 25 anos com os primeiros trabalhos de redução de danos no
país, que consistem na identificação dos usuários nas ruas e na busca de
soluções individuais. "Identificamos que o que está levando as pessoas a
se tornarem dependentes, não é só o acesso à droga. Fica dependente aquele que,
além do acesso, fica privado de direitos fundamentais, como moradia, educação,
saúde", diz Silveira.
Por
causa disso, segundo Silveira, as ações de assistência médica precisam ser
casadas com outras políticas públicas que combatam a vulnerabilidade social da
população. "É um equívoco focar a política na droga, porque daí começa a
se vender uma imagem de que aquela situação de miséria da Cracolândia é
decorrente da droga, e, na verdade, a droga é consequência da miséria",
diz ele.
Para
o psiquiatra, a ação da prefeitura paulistana, de repressão ao tráfico na
Cracolândia e de dispersão dos usuários, atrapalha esse trabalho do Proad e do
próprio governo. "A repressão vai contra todo o trabalho de redução de
danos, dos educadores de rua, dos consultórios de rua, e pode pôr a perder anos
de trabalho de formiguinha."
O
grupo entra em contato com as mais diversas realidades e, segundo o coordenador
do Proad, nem sempre a retirada da droga é a primeira indicação. "Uma
situação emblemática foi de uma adolescente de rua que nos disse que usava
crack, porque, para sobreviver, ela tinha que se prostituir, e para isso
precisava estar drogada, senão não aguentava a dor. Você vai dizer que para
essa menina a droga é um problema? É uma solução de sobrevivência. Impedir o
acesso dessa menina às drogas é colocar um problema a mais." A indicação
nesse caso, segundo ele, foi buscar o contato de uma tia que podia cuidar da
jovem.
Autor(es): Por
Samantha Maia e Luciano Máximo | De São Paulo
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