terça-feira, 22 de outubro de 2013




Em busca de horizontes, nos caminhos das pedras.

Eram quatro ou cinco adolescentes que resolveram colocar colchões nos telhados da bela casa do Condomínio, aproveitando a ausência dos adultos e ao som alto, muito alto, de raps autorizadores, curtiam seus baseados e repetiam os comandos das letras, nem sempre acompanhando a melodia (?) das músicas ao fundo. Tudo muito “normal” e até “tolerável”, não fossem vizinhos da casa em que eu estava e não fosse pelo fôlego de intermináveis horas de ruídos perturbadores, muito acima dos decibéis permitidos, noite adentro. Com a chegada, finalmente, dos seguranças do local, a paz foi possível e o sono retomado, não sem pesadelos.
Muito cedo, na manhã seguinte, o mesmo CD, a mesma fumaça e mal os jovens apareceram nas janelas, rumo ao telhado, não me contive: “Ei rapaziada, de novo, esta fumaça chegando até aqui e a gente tendo que compartilhar, sem querer?  E maconha faz mal, sabiam? Vocês deviam se informar melhor.” – “É medicinal, tia, e vai ser liberada, logo, logo” , respondeu um deles, provocando risos nos demais.
Eu tinha muitos, muitíssimos argumentos contrários a este pensamento que se espalha mais que o fumacê a que estamos submetidos, em todos os cantos, mas naquele momento me calei. Primeiro porque eles certamente não me ouviriam, não naquele momento, entorpecidos por esta e provavelmente outras substâncias usadas além do álcool visível nas inúmeras garrafas vazias expostas. Segundo porque o poderio da indústria da legalização da maconha, com seus expoentes menos ou mais inocentes, com seus argumentos  aparentemente científicos e tão bem intencionados, preocupadíssimos em aliviar a “dor crônica de pacientes”, fazendo de sua principal bandeira o propagado valor “medicinal” da maconha, é hoje nosso principal obstáculo na abordagem motivacional destes jovens, contra o uso de drogas. Digo “nosso”, pois sou uma profissional de saúde, uma médica, que trabalha cotidianamente com esta população. E ao me calar frente aqueles adolescentes no telhado vizinho, fui tomada por um lamento.
Para nós que lidamos com a grave questão da dependência química, os números, as estatísticas tem um valor maior que dados frios anunciados em reportagens. Estamos vivenciando este grave acometimento da saúde de jovens, de adultos, homens e mulheres, famílias inteiras, empresas e toda uma sociedade sendo atingida, direta ou indiretamente pelo enorme aumento do uso de álcool e outras drogas e suas consequências. Confirmamos as estatísticas que dizem que a maconha é prejudicial e pode desencadear transtornos mentais graves, como a própria esquizofrenia, e também acompanhamos inúmeros casos em que a maconha e o álcool abrem portas para o uso da cocaína e do crack. Podemos afirmar que no tratamento do dependente de crack é fundamental que ele deixe também as outras substâncias pois do contrário terá maiores dificuldades em sustentar a abstinência desta última e terrível droga.
Olhando aqueles meninos que mal  se equilibravam no telhado e se sentindo protegidos pela permissividade de campanhas publicitárias  e o universo pleno de prazeres prometidos com as bebidas alcóolicas e com o discurso de autoridades tão inquestionáveis de ex-presidentes da república a favor da liberação de sua “adorada, inofensiva e até medicinal” maconha, não pude deixar de prolongar o meu silêncio e minha reflexão. Decidi então escrever mais este artigo. Afinal, percebo que muitas pessoas ainda se confundem com os argumentos a favor ou contra uma política liberalizante quanto ao uso de drogas ilícitas. Todos se preocupam com o poder do tráfico e gostariam de enfrenta-lo, buscando formas mais eficazes e criativas.
Lamentavelmente as experiências de legalização de drogas até hoje no mundo não apresentam impacto na diminuição da criminalidade e vem produzindo aumentos significativos no consumo, como era de se esperar. Afinal, quanto mais fácil o acesso às substâncias, maior o risco do uso. Na questão da maconha, atrás de uma argumentação aparentemente científica e bem intencionada, escondem-se interesses econômicos gigantescos. Para aprofundamento nesta questão recomendo o site da Uniad/Unifesp: www.uniad.org.br. Teremos que pensar em alternativas mais locais, territoriais, comunitárias, afinal o tráfico hoje tem como componentes fundamentais a capilarização nos bairros, os “pequenos traficantes”, o envolvimento de outras pessoas da família. O trabalho preventivo junto às famílias, às crianças e aos jovens, o desenvolvimento de uma consciência mais ampla, ecológica, espiritual, são questões a serem contempladas ao lado de maior empenho e tecnologia no enfrentamento das redes internacionais do tráfico de drogas e seus braços nacionais.
No Brasil este debate está colocado. Além de promovê-lo e ampliá-lo penso que não podemos descansar no debate. É preciso avançar numa política e ações de prevenção e enfrentamento da drogadição como um todo, tendo como foco principal o uso abusivo do álcool e das drogas ilícitas, a maconha, a cocaína, o crack, o extasy e outras, sem esquecermos do tabaco, que vem crescendo novamente entre os adolescentes e jovens. Lamentavelmente vimos nossas autoridades cederem diante da pressão da indústria da bebida e o álcool volta a ser liberado nos estádios, rumo à Copa do Mundo com suas promessas de grande consumo de etílicos.
É preciso definir uma Política Nacional clara e efetiva de prevenção e proteção principalmente das crianças e jovens quanto ao uso do álcool e outras drogas. Experiências locais neste sentido tem demonstrado impacto na redução dos índices de criminalidade relacionados com o uso de álcool e outras drogas, como mostram as experiências de Diadema  e Paulínia em São Paulo e de Montenegro no Rio Grande do Sul.
Ainda estamos na expectativa de uma maior mobilização de todos os setores da sociedade no enfrentamento ao uso de drogas, é preciso serrar fileiras, ampliar as campanhas de prevenção nas escolas, nas empresas, nos clubes, nos meios de comunicação, no parlamento, nos sindicatos e associações. Ampliar a oferta de serviços de tratamento, os ambulatórios,  os Hospitais-Dia, os Caps, as vagas para internações nos casos mais graves, as comunidades terapêuticas, os serviços de reabilitação e ressocialização. Também não podemos mais tolerar a utilização deste grave acometimento à saúde e à vida das pessoas usados como fins eleitoreiros.
Este é o nosso momento histórico. Estamos sendo chamados a agir, a ser criativos, a vencer preconceitos e limites ideológicos, a fazer a nossa parte, a dar o exemplo, a começar em casa, no trabalho, a olhar o telhado alheio e perceber que somos também responsáveis, que  “somos um” com estes jovens e seus pais, a sair da culpa, do julgamento e da impotência e encarar, olhar de frente: enfrentar.
Ainda com a memória do belo movimento da Primavera da Paz em Goiânia, neste último setembro, coordenado pela Rede pela Paz,  que terminou com as crianças em seus triciclos no Parque do Areião, lembrei-me agora de Mahatma Gandhi, pra encerrar este artigo, quando ele nos diz que “O futuro dependerá daquilo que fizermos no presente”. Eu confio.
Dagmar Ramos
(*Médica psiquiatra com formação em Medicina Preventiva e Social pela USP, em Dependência Química pela Uniad/Unifesp,  diretora técnica do Centro Clínico Francisco de Assis – especializado em dependência química, membro do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas e do Fórum Goiano de Enfrentamento ao Crack e outras drogas).





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