quarta-feira, 11 de julho de 2012


Legalização de drogas no Brasil: Em busca da racionalidade perdida.

Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira, Ph.D.
UNIAD (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas)
Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo.

Nos últimos meses temos assistido um intenso debate sobre a legalização de drogas no Brasil. A própria intensidade no qual este debate tem sido travado mostra que o assunto drogas produz um efeito no qual as pessoas sentem-se levadas a ter muitas certezas e a ficar de um lado ou de outro da legalização. Mostra também que o debate é profundamente ideológico e que após ouvirmos o lado favorável à legalização e o lado da proibição pura e simples, não ficamos nenhum pouco mais esclarecidos a respeito da melhor política a ser seguida. Quando somente um dos aspectos de uma política de drogas, ou seja o status legal de uma droga torna-se o assunto principal do debate é como se o rabo estivesse abanando o cachorro e não o contrário. O objetivo deste artigo é (i) avaliar a racionalidade e a oportunidade deste debate como tem sido veiculado e (ii) tentar estabelecer pontes com outras drogas de abuso; (iii) avaliar os dados disponíveis sobre o efeito da legalização de uma droga; e (iv) propor uma alternativa de política de drogas que seja baseada em objetivos claros a serem alcançados.
 A racionalidade da legalização de uma droga
Com a intensidade que o debate sobre as drogas gera poderíamos imaginar que a sociedade sempre tenha reagido de uma forma eficiente ao longo do tempo. Entretanto historicamente a sociedade não tem avaliado muito bem os riscos do uso de uma nova droga ou uma nova forma de uso de uma velha droga. Por exemplo, a partir do começo do século inovações tecnológicas fizeram a produção de cigarros ficar mais fácil, com a absorção da nicotina pelos novos cigarros muito mais eficaz do que a produção artesanal que ocorria anteriormente. Além disso o preço do cigarro caiu dramaticamente. Progressivamente houve um aumento no número de fumantes em todo o mundo e por muito anos os danos físicos associados ao cigarro não foram identificados. Muitos governos chegavam mesmo a estimular o consumo do fumo, estimulados pelos ganhos com impostos. Levou-se mais de quarenta anos para os países desenvolvidos identificassem os males causados pelo fumo de uma forma definitiva e outros vinte anos para implementar políticas que pudessem começar a reverter a situação. Esta lentidão em reconhecer danos em algumas situações sociais faz com que mudanças no status de qualquer droga, e principalmente quando um aumento de consumo seja uma das possibilidades deva ser encarada com extremo cuidado.
 Um dos motivos que dificulta a ação da sociedade é um excesso de retórica que ocorre em relação ao problema. Podemos notar que cada droga existente produz a sua própria retórica. Por exemplo, no caso recente da maconha no Brasil tem sido comum utilizar-se uma retórica na qual o uso desta substância estaria relacionado com a liberdade e os direitos do cidadão em usar qualquer droga e que não seria função do estado interferir neste comportamento. Um excesso de controle do estado iria contra os direitos da pessoa. Por outro lado o cigarro inspira outro tipo de retórica onde busca-se estimular uma ação estatal em controlar o abuso das companhias de cigarro. Esta retórica pode mudar de país para país de acordo com o seu momento histórico. Na Suécia, por exemplo, recentemente tem sido usada uma retórica na qual a propaganda de cigarros seria uma afronta à liberdade individual. Deixar crianças e adolescentes serem expostos à propaganda mentirosa do fumo seria uma forma bárbara de primitivismo social.

Tanto a intensidade deste debate quanto o clima ideológico advém do fato de que temos utilizado quase nenhuma informação objetiva para avaliarmos a política a ser seguida. Os dois lados do debate usam informações de fontes muito duvidosas e muitas vezes completamente fora de contexto. Temos que pelo menos saber alguns modelos teóricos que poderíamos estar usando para guiar as nossas futuras decisões. A figura 1 mostra os três modelos que, de uma forma explícita ou não, acabam sendo usados neste debate. Os que defendem a proibição total do uso de drogas acreditam que a curva a-b representa o controle ideal do uso de drogas. Significando que a proibição total de uma droga seria a melhor opção pois não causaria nenhum dano social, e a medida que caminhássemos para a lado b da curva, ou seja para a legalização das drogas, o dano social aumentaria. O grande argumento contra este modelo foi a própria lei seca americana que produziu um aumento considerável da violência devido ao crime organizado. Muito tem sido escrito sobre este período da história americana e enfatizado este lado do custo social da lei seca, no entanto, do ponto de vista do consumo de álcool a lei foi um sucesso, pois diminuiu consideravelmente o consumo de álcool global. Entretanto, houve um aumento do consumo de álcool de péssima qualidade e um número considerável de pessoas teve problemas sérios de saúde. De qualquer forma uma simples análise de custo benefício mostra que esta foi uma experiência que nenhum país ocidental quer repetir novamente, embora os países islâmicos ainda adotem este tipo de controle social rígido.
 Do outro lado do debate há as pessoas que defendem a legalização total das drogas. A curva c-d ilustra este modelo onde a proibição total de uma droga levaria a um grande nível de dano, principalmente pelo crime que estaria associado com o uso ilegal de uma substância, a maior corrupção social, o nível mais impuro da droga no mercado negro, e à dificuldade das pessoas buscarem ajuda em relação a um comportamento ilegal. Argumenta-se que a proibição total causaria mais dano do que mesmo a legalização total da droga. A grande fraqueza deste tipo de argumento é que não leva em consideração que a legalização de uma droga produz uma maior oferta desta droga, e portanto exporia um número maior de pessoas ao consumo e portanto às suas complicações. Enfatiza-se aqui em demasia o comportamento individual do uso de drogas e não se leva em consideração o nível agregado de dano. Por exemplo, se legalizássemos completamente a maconha uma das possibilidades seria uma maior consumo global desta droga, e possivelmente um maior consumo na população mais jovem, pois é isto que ocorre com as drogas lícitas como o álcool e o cigarro. Portanto com a legalização teríamos por um lado talvez menor número de crimes mais violentos, mas por outro lado a população mais jovem teria maiores complicações na escola, e talvez até aumentasse um tipo de criminalidade menos violenta para conseguir um pouco de dinheiro para consumir drogas.
 Existe um terceiro modelo intermediário de política que é o baseado na curva c-e. Este modelo tem recebido grande suporte em termos de pesquisa, especialmente quando se reúne todas as drogas de abuso lícitas ou não. Nesta curva podemos perceber que a proibição total de uma droga produz dano, e a medida que a droga progride na escala de legalidade, e portanto a sua disponibilidade social aumenta, o número de usuários aumenta, aumentando também o nível global de dano. As drogas lícitas oferecem as maiores evidências para este modelo. No caso do álcool, por exemplo, centenas de pesquisas mostraram que quanto menor o preço e maior a disponibilidade num país, maior é o número de pessoas com problemas relacionados com o uso de álcool. A conseqüência de se adotar a curva c-e como o modelo de política de drogas a ser seguido é que devemos, em primeiro lugar, diminuir o consumo global de todas as drogas. A estratégia para atingirmos esta diminuição é que pode variar de droga para droga e depender do momento histórico que uma sociedade vive.
 A tendência mundial é por exemplo tornar progressivamente o álcool e o fumo mais próximo de uma proibição, ou de controles sociais mais rígidos, através de leis e restrições ao uso das mais variadas. No caso da maconha não existe uma tendência mundial nítida, com alguns países adotando penas mais leves ou um grau maior de tolerância, mas em nenhum lugar legalização aberta. O caso das drogas mais pesadas como heroína e cocaína a tendência é marcante em relação à proibição. O fato de existir políticas diferentes para drogas diferentes é muitas vezes apontado como hipocrisia social. Na realidade esta deveria ser uma atitude pragmática de uma sociedade que queira efetivamente responder ao problema das drogas. Uma política de drogas baseada em resultados e não em retórica e debate ideológico deveria ser julgada pelo seu efeito na diminuição do custo social de todas as drogas e não somente de uma droga específica.

 As drogas lícitas podem nos ensinar algo?
O álcool é a droga modelo com maior potencial para nos ensinar como estabelecer uma verdadeira política de drogas baseada em resultados. Em 1995 a Organização Mundial de Saúde produziu um livro (“Alcohol Policy and the Public Good”) onde os maiores especialistas em álcool do mundo se reuniram para propor quais as medidas a serem implementadas em todos os países para diminuir o custo social relacionado com o álcool. O princípio básico dessas políticas é que deveríamos diminuir o consumo global de álcool em todos os países. A figura 2 ilustra o modelo a ser seguido. O consumo de álcool de qualquer população segue uma curva normal, que nesta figura seria a curva X, onde para melhor visualização foi excluída a população que não bebe. Temos portanto uma parte da população que bebe um pouco, uma grande parte que estaria na média populacional e uma parte de bebedores pesados. Poderíamos pensar inicialmente que deveríamos buscar políticas que diminuíssem o número de bebedores pesados, mantendo a média de ingestão de álcool da população. Essas políticas poderiam quando muito produzir um pequeno efeito quando implementadas, como mostra a curva Y. No entanto quando as políticas são no sentido de diminuir o consumo global, como na curva Z decrescendo a média de consumo populacional, existe um impacto muito maior no número de bebedores com problemas, pois um número menor de pessoas beberão, um número menor ficará dependente, e portanto menor custo social global. Este efeito tem sido chamado do “paradoxo preventivo”, onde, para diminuirmos substancialmente o número de pessoas dependentes, temos de diminuir o consumo global de toda a população. As evidências deste modelo são muito consistentes, e tem sido mostradas em centenas de estudos.

As políticas a serem implementadas no caso do álcool são várias e visariam essencialmente diminuir o consumo global. 1 - políticas de preço e taxação que são as ações com maior impacto social imediato. Estudos tem mostrado que o preço do álcool segue o padrão de qualquer mercadoria, e quanto maior o preço menor o consumo. Existe uma elasticidade do consumo, que no caso do álcool é diferente de outras mercadorias, mas para cada aumento de 100% do preço existe cerca de 30% de queda de consumo global. Mesmo os bebedores pesados diminuem o consumo de acordo com o preço. Este tipo de política pode ser especialmente útil no Brasil onde o preço do álcool é um dos mais baixos do mundo ocidental, cerca de U$ 1,5 por um litro de pinga. 2 - políticas que diminuíssem o acesso físico do álcool. Tem sido demonstrado que quanto menor o número de locais vendendo álcool, maior o respeito ao limite de idade para vendas de bebidas alcoólicas, maior a consistência das leis do beber e dirigir, menor é o consumo global de uma população. 3 - políticas de proibição da propaganda nos meios de comunicação. O objetivo da propaganda do álcool não é só de fazer com que os consumidores façam preferência por esta ou aquela bebida, mas criar um clima social de tolerância e estimulo com o álcool visando nitidamente aumentar o consumo global. A proibição da propaganda tem sido consistentemente mostrada em pesquisas como um fator importante da diminuição do consumo. 4 - campanhas na mídia e nas escolas visando informar melhor os efeitos de álcool. O efeito dessas campanhas quando feitas desacompanhadas das demais políticas produzem muito pouco efeito. De nada adianta a professora na escola informar o aluno sobre álcool e outras drogas, se a televisão continua mostrando a alegria e descontração associadas com o álcool , quando esta droga transforma-se na “paixão nacional”.

Em resumo, o álcool é a droga que apresenta formas de controle social mais estudados e onde as políticas para diminuir o custo social do seu uso são muito bem estabelecidas. Esses princípios podem muito bem ser usados para as demais drogas visando essencialmente diminuir o acesso e o consumo dessas drogas.
 As leis influenciam o consumo de drogas?
Uma pergunta que deve ser respondida é, se os controles sociais são efetivos por que tornar ilegal somente algumas das drogas ? Como já salientado acima estratégias diferentes deveriam ser usadas para as diferentes drogas, e as evidências apontam para que muito pouco benefício poderia ocorrer em tornar as drogas que são ilegais em legais, pois haveria uma forte tendência no aumento do consumo. Mas uma questão que permanece é se as leis efetivamente influenciam o comportamento de consumo de drogas.
 No caso do álcool tem sido demonstrado por inúmeros trabalhos que a proibição da venda de bebidas alcoólicas para menores, quando implementadas, diminui significantemente o consumo. Vários estados americanos quando implementaram leis proibindo a venda de bebidas houve uma diminuição substancial no número de acidentes de carro entre menores devido ao uso de álcool. O grande problema em tentar responder o quanto as leis impedem o consumo de drogas é que não existem muitos dados para as drogas que sempre foram ilegais. Em um artigo recente (Drugs and the Law: A Psychological Analysis of Drug Prohibition by R. MacCoun) buscou-se analisar a escassa literatura existente e basendo-se também no efeito das leis em deter outros comportamento anti-sociais. Esse autor mostrou que as leis e os controles informais sociais conteriam o consumo de drogas através de vários mecanismos (disponibilidade da droga, estigmatização do uso, medo do atividades ilegais, o efeito fruto proibido, e um efeito simbólico geral da proibição). A abolição das leis proibindo o consumo teria um efeito dramático em vários desses fatores (estigmatização do uso, medo de atividades ilegais, o efeito fruto proibido, e efeito simbólico geral da proibição), diminuindo portanto uma série de impedimentos para o consumo.
 O mais importante neste estudo acima é que as evidências mostram que a abolição das leis teria um efeito maior nas pessoas que comumente não consomem drogas, potencialmente levando um maior número de pessoas a experimentarem e a tornarem-se usuários regulares ou esporádicos. Por outro lado os estudos mostraram que quanto maior o envolvimento com drogas menor seria o impacto das leis em deter o consumo. No entanto a lei serve para deter um número substancial de pessoas de usar as drogas. Esse estudo mostra que qualquer efeito dramático no status legal de uma droga é desaconselhável pois as conseqüências são literalmente imprevisíveis com uma nítida tendência a um aumento do consumo devido a falta de controles sociais disponíveis na falta de leis muito claras.
 Como buscar um política de drogas de resultados?
O desafio de uma política de drogas é buscar o balanço certo para cada droga, mas sempre visando uma diminuição global do consumo. A melhor atitude social seria de uma tolerância contrariada com as drogas, sem um fervor ideológico mas com um pragmatismo afiado e persistente. Corremos o risco no Brasil de que o debate da legalização de drogas vir a ocultar as reais questões relacionadas com uma política de drogas racional e balanceada. Podemos ficar anos num debate ideológico improdutivo onde as pessoas defenderão a favor ou contra a legalização de uma droga específica com grande paixão e pouca informação.
 Sofremos nesta última década um exemplo dramático de uma falta de política associada com um debate ideológico improdutivo que foi a relação do uso de drogas injetáveis e a infecção pelo HIV. Todos esses anos ficamos discutindo se seria válido trocar seringas e agulhas com os usuários de drogas e se isto seria ou não um estímulo ao consumo de drogas. Chegamos em 1996 com mais de 50% dos usuários de drogas contaminados pelo HIV e milhares de usuários, suas esposas e filhos mortos por esta política cega e desumana. A Inglaterra, por exemplo, começou a discutir este assunto em 1984 e implementou rapidamente políticas realistas apresenta hoje somente 1% dos seus usuários contaminados. Essas políticas foram implementadas com debate mas sem paixão, buscando uma política de resultados onde a prioridade foi manter vivos os usuários.
 O desafio do debate das drogas no Brasil não é se devemos afrouxar as leis da maconha, mas como fazer um debate informado e com dados, e produzir uma política de drogas racional e balanceada que possa ser avaliada constantemente. A implementação desta política não ocorre espontaneamente, mas com uma ação determinada de governo. Talvez seja inútil esperarmos por uma grande política nacional de drogas. Ações locais de governo poderiam fazer uma grande diferença. Os estados e municípios deveriam envolver-se nessas ações com a ajuda comunitária. A sociedade civil já está bastante mobilizada com o assunto álcool e drogas, é necessário agora que os governos democraticamente eleitos mostrem a sua capacidade de organizar um resposta racional a um problema que afeta milhões de brasileiros com um custo enorme para o país.


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